Entenda um pouco mais sobre o que diz a lei que protege vítimas de violência doméstica
(Gaúcha ZN, 12/06/2019 – acesse no site de origem)
Já faz 13 anos que a Lei Maria da Penha foi sancionada. O texto original prevê como violência doméstica ou familiar aquela cometida em qualquer “relação íntima de afeto”. Mas, desde 2006, o entendimento sobre o que é um relacionamento íntimo mudou.
Nos primeiros anos da lei, já se discutia o que esse conceito tão subjetivo queria dizer. Na época, era mais comum entender que ela se aplicaria apenas em casos de namoro ou casamento, explica a advogada Renata Teixeira Jardim, coordenadora de programas da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, organização que há 26 anos trabalha na promoção dos direitos da mulher e que participou do consórcio que debateu e propôs a lei. Hoje, tempos de Tinder e outros aplicativos de relacionamento, a expressão volta a ser debatida.
— Penso que, na era digital em que vivemos, esses tipos de relacionamento devem ser incluídos na proteção prevista na Lei Maria da Penha — afirma Madgéli Frantz Machado, juíza titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Porto Alegre.
Na Capital, já houve pelo menos uma decisão favorável a uma mulher ameaçada por um homem com quem se relacionou apenas por aplicativo de relacionamento. Segundo a advogada Gabriela Souza, que defendeu a vítima, o homem foi proibido de se aproximar da mulher e de enviar mensagens. O caso é de 2018.
– Ainda é controverso, depende da interpretação do juiz. Mas são casos de contexto íntimo, em que existe uma intenção de ter intimidade. Poderia, inclusive, ser um “crush de balada” que ameaçou a mulher – opina Gabriela.
A juíza Madgéli afirma que já chegaram à justiça episódios que envolvem casais que saíram apenas uma vez e explica que, para decidir sobre a aplicação da Lei Maria da Penha, cada caso leva em consideração o contexto em que se deu o relacionamento.
Além da condição “íntima de afeto”, os crimes podem ocorrer dentro de casa, cometidos por alguém com ou sem vínculo familiar com a vítima, segundo o texto da lei. Isto quer dizer que uma empregada doméstica ou babá pode ser alvo desse tipo de crime na residência onde trabalha, cita Gabriela.
O documento também define como violência doméstica ou familiar atos praticados por alguém da família fora de casa. E, como família, a legislação considera grupo de pessoas unidas por laços naturais (irmãos, por exemplo), por afinidade (um amigo íntimo) ou por vontade expressa (caso de maridos). Isso tudo em tese, porque os casos sempre dependem da interpretação do juiz.
– No Rio Grande do Sul, ainda há interpretações mais restritivas, como, por exemplo, entender que familiar é só quem reside junto. Mas não é o que diz a lei – destaca Renata.
Casos de homicídios de mulheres crescem
Cada vez mais mulheres são mortas dentro de seus lares. Casos assim aumentaram 17,1% entre 2012 e 2017, enquanto os que ocorrem fora de casa caíram 3,3%, segundo o Atlas da Violência 2019 divulgado no início de junho. O documento traz outro dado preocupante: do total de assassinatos de mulheres, 28,5% ocorrem dentro da residência. O índice sobe para 39,3% se desconsiderados os óbitos em local ignorado.
O levantamento não aponta quem cometeu os crimes nem sua motivação. Contudo, o local das mortes sugere com alta probabilidade, segundo os autores do estudo, que são casos decorrentes de violência doméstica ou familiar. Por isso a importância de as mulheres entenderem os direitos previstos na Lei Maria da Penha.
O texto prevê que a violência doméstica ou familiar pode ser física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral. Um tipo de violência não exclui o outro. Aliás, é comum o caráter múltiplo desses crimes, afirma a advogada Gabriela.
Maioria das vítimas de feminicídio íntimo não tem medida protetiva
Uma mulher que seja vítima de um desses casos pode registrar um boletim de ocorrência em uma delegacia comum ou especializada no atendimento à mulher. Além disso, pode solicitar à Justiça uma Medida Protetiva de Urgência (MPU), que pode impor restrições ao agressor, como afastá-lo do lar, suspender porte de armas, proibir contato com a vítima, entre outras determinações para proteger a mulher.
Quando uma mulher que tem uma MPU a seu favor é morta pelo seu parceiro ou ex, é comum pensar que a medida foi em vão, comenta Gabriela. Na verdade, esses casos são minoria. A maioria das vítimas de feminicídio cometido por parceiro íntimo não tem MPU no Rio Grande do Sul. O dado é da Secretaria de Segurança Pública do Estado.
Segundo o documento de 2016, o mais recente disponível, 65,7% das mulheres mortas sequer tinham ocorrências registradas contra o autor do crime.
Para a delegada titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, Tatiana Bastos, os índices reforçam a importância da denúncia para a proteção da mulher. A advogada Renata Teixeira Jardim faz a ressalva de que, antes de denunciar, a mulher precisa buscar informação e estar preparada para sair em segurança da situação de violência.
Na sua visão, os números mostram que a maioria das que estão morrendo não está buscando ajuda do Estado e que isso pode dizer muitas coisas: que elas não acreditam no Estado, que não conseguem ter acesso aos serviços ou que podem ter buscado ajuda e ter sido mal atendidas. Criar uma rede de apoio, procurar líderes comunitários, conversar com pessoas próximas são alternativas para sair do isolamento que acomete vítimas de violência doméstica.
— Às vezes, uma denúncia coloca a mulher em risco maior — alerta a advogada. — Dizer que vai se separar, por exemplo, pode virar um risco maior do que a subordinação, que não é o ideal, mas não seria letal.
Marcela Donini