Dez anos antes, em 2007, correspondiam a pouco mais da metade (54%) das ocorrências, mostra o Atlas da Violência 2019, do Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(O Globo, 12/07/2019 – acesse no site de origem)
Marielle Franco, de 38 anos, era vereadora. Vanderléia dos Santos, 25, Elcida Ambrósio, 36, e Fabiane Lopes, 28, cuidavam da casa. Caroline Rodrigues, 36, era cabeleireira e motorista de aplicativo. Essas cinco mulheres tiveram trajetórias de vida distintas, em diferentes regiões do país, mas têm em comum a cor da pele e a forma como morreram: são negras e foram assassinadas brutalmente. Casos como esses têm crescido como nenhum outro no país. Em 2017, foram assassinadas nove mulheres negras por dia no Brasil. Elas já representam dois terços do total de vítimas de homicídios femininos no país. Dez anos antes, em 2007, elas correspondiam a pouco mais da metade (54%) das ocorrências. Os dados são do mais recente Atlas da Violência do Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Nunca se assassinou tantas mulheres no Brasil. Em 2017, morreram 4.936. Mas os homicídios de mulheres negras, segundo a pesquisa, avançaram bem mais. A alta foi de 60,5% em uma década, frente a uma expansão de 1,7% entre as não negras, grupo que reúne brancas, amarelas e indígenas. Mesmo quando tirado o efeito demográfico — mulheres negras (pretas e pardas) são maioria na população feminina — a diferença é brutal. O documento mostra que, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 30%.
O período analisado é exatamente o que se seguiu após a implementação da Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006. Especialistas questionam sua eficácia junto a esse grupo mais vulnerável da população feminina.
— A mulher negra está mais presente nas camadas de baixa renda e menor nível educacional, logo vive em ambiente e condições com maior exposição à violência. Dentro e fora de casa. Essa combinação também dificulta seu acesso à Justiça e, quando ela consegue chegar, muitas vezes é vítima de racismo institucional: tem mais dificuldades de ser ouvida numa delegacia e a contar com medidas protetivas, pois o patriarcalismo se junta ao racismo — analisa o especialista em segurança pública e pesquisador do Ipea Daniel Cerqueira, um dos coordenadores do estudo.
Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e outra coordenadora do Atlas, reforça a análise de Daniel. Para ela, as mulheres negras não estão sendo atingidas por políticas públicas ditas universais, como os dispositivos protetivos que vieram na esteira da Lei Maria da Penha:
— Essas políticas são concentradas nos grandes centros urbanos e a mulher da periferia, que é essencialmente negra, muitas vezes não tem como acessar. Em São Paulo, uma mulher do extremo sul da cidade tem de percorrer 25 quilômetros para acessar uma delegacia da mulher. Isso não é concebível. Muitas vezes ela não tem dinheiro para pegar condução ou trabalha 12 horas por dia. Ela não chega lá porque é negra.
Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional, cita o racismo como a principal explicação para a maior violência contra esse grupo. Ela lembra que, no Brasil, mais de 75% dos homicídios são de negros e diz que não há políticas públicas consistentes para enfrentar o preconceito.
— O racismo significa, na vida cotidiana, uma completa desvalorização. As mulheres negras morrem por causa da cor. São corpos mais matáveis para a sociedade — diz Jurema.
A diretora da Anistia lembra que a luta pela implementação da Lei Maria da Penha e de outras políticas de combate à violência de gênero foi e é de mulheres das mais diversas raças. Mas, quando a lei e os mecanismos que ela instituiu foram colocados em prática, o enfrentamento ao racismo e ao racismo institucional não foram incluídos, observa:
— Essa recusa de enfrentar o racismo institucional fez com que os mecanismos de prevenção não alcançassem as mulheres negras.
Para Samira, o equipamento público precisa chegar até essas mulheres, com programas de enfrentamento de violência nos moldes dos médicos de saúde da família, que atuam por bairros ou regiões de um município, e através de delegacias móveis. Para atacar as causas estruturais da maior vulnerabilidade das mulheres negras, ela cita medidas relacionadas ao mercado de trabalho e educação:
— Políticas preventivas levam algumas décadas para surtirem efeito, mas precisam ser implementadas. Elas dependem basicamente do Estado. Mas a sensação é que estamos indo na contramão. Quando falamos de gênero, estamos falando de ensinar na primeira infância, meninos e meninas, que eles são iguais. Enquanto não superarmos o machismo, não vamos acabar com a violência contra a mulher.
Decreto das armas preocupa
A presença de armas próximas a essas mulheres é outro fator de aumento da vulnerabilidade. Mais da metade (52%) dos assassinatos femininos no Brasil são cometidos com armas de fogo. Em maio, a Anistia Internacional Brasil lançou uma carta aberta ao presidente Jair Bolsonaro para alertar que os decretos propostos para facilitar o acesso a armasteriam como efeito colateral o aumento do número de mortes de jovens negros, mulheres e crianças.
— Estamos tentando dialogar diretamente com o presidente da República. Já pedimos audiência com ele, mas não foi possível. Esperamos que ele possa nos ouvir. Esse decreto não é solução para a violência, é um projeto de agravamento do problema. Uma arma dentro de casa é um perigo, e as mulheres negras também estão mais expostas a elas na rua. Elas vivem em comunidades onde há tiroteios e violência da polícia. É preciso enfrentar o racismo e tirar armas de circulação — defende a diretora-executiva da Anistia.
Cerqueira, do Ipea, diz que o decreto das armas é uma “aberração”. Segundo o especialista em segurança pública, uma arma dentro de casa faz aumentar em cinco vezes o risco de morte.
Por Daiane Costa