Em visita ao Brasil, médico do Congo que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2018 mostra como a masculinidade tóxica causa danos irreparáveis no mundo todo
(Saúde, 23/08/2019 – acesse no site de origem)
Denis Mukwege é a medicina em seu estado mais puro. O congolês de 64 anos especializado em ginecologia e obstetrícia ganhou destaque mundial por seu impressionante trabalho em defesa das mulheres. Ele esteve essa semana no Brasil, onde realizou uma série de palestras. Seu último evento público foi uma conversa informal com funcionários do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, ocasião que ele aproveitou para contar um pouco de sua trajetória e responder perguntas da plateia.
Mukwege se formou médico pela Universidade do Burundi, na África Oriental, e concluiu seus estudos na Universidade de Angers, na França, e na Universidade de Bruxelas, na Bélgica. Ele abandonou a possibilidade de uma carreira de destaque em solo europeu para voltar ao continente africano e atender a população mais necessitada.
Ele foi testemunha viva de um massacre no Hospital de Lermera, em 1996. O ginecologista conta que suas pacientes recém-operadas e os funcionários da instituição foram assassinados a sangue frio durante a primeira guerra civil da República Democrática do Congo.
Três anos depois, o próprio Denis Mukwege fundou o Hospital de Panzi, onde trabalha até hoje. Durante esses 20 anos, ele atendeu mais de 30 mil mulheres vítimas de violência sexual. Um projeto tão grandioso foi um dos motivos que levaram a sua nomeação para o Prêmio Nobel da Paz em 2018, ao lado da da ativista yazidi Nádia Murad.
Histórias aterradoras
Ele conta que, quando ainda estava fazendo os ajustes finais para abrir o novo hospital, uma mulher entrou correndo pelos corredores da nova instituição totalmente desesperada. Seu ventre sangrava muito. As pessoas que a acompanhavam contaram que ela tinha sido estuprada diversas vezes por dez homens. No final, eles ainda enfiaram uma arma em seu canal vaginal e atiraram na direção de seu útero.
Histórias como essa, infelizmente, são comuns no país de Mukwege. “Em média, essas vítimas são estupradas por três homens. Não é raro atendermos bebês de seis meses que passaram por uma violência dessas”, conta.
A República Democrática do Congo vive décadas de guerra. Ao contrário de muitos de seus vizinhos, o problema não se relaciona com disputas entre etnias, religiões ou facções políticas. A questão é tecnológica mesmo — e, de certa maneira, tem a ver comigo e com você que lê esse texto.
Esse país localizado no coração da África detém 60% das reservas de um mineral chamado columbita-talantina (ou coltan). Tal produto é primordial para a fabricação das peças dos aparelhos eletrônicos, como celulares, tablets e computadores, que tanto usamos no dia a dia.
A eterna briga congolesa se concentra, então, no controle das minas desse material tão valioso. Grupos armados invadem territórios e expulsam as pessoas de sua terra, o que já resultou em 6 milhões de mortes, 4 milhões de refugiados e 4 milhões de deslocados internos.
Quando esses criminosos chegam numa nova região, a principal maneira de humilhar aquela comunidade indefesa é justamente atacar suas mulheres, não importa a idade que elas tenham. O ginecologista, aliás, compara o estupro como uma arma de destruição em massa: “Vivemos num mundo que perde todas as suas referências de humanidade. E, pior, não vemos nenhuma reação no plano internacional contra esses crimes que ocorrem todos os dias.”
Anos de sofrimento
Desafortunadamente, a história parece se repetir em terras congolesas: há pouco mais de um século, a busca desenfreada pela borracha para fabricar os pneus dos primeiros carros motivou um verdadeiro banho de sangue na região. À época, o Congo era uma propriedade privada do rei Leopoldo II (1835 – 1909), da Bélgica. As políticas criadas pelo sanguinário monarca causaram a morte de 1 a 15 milhões de pessoas durante as primeiras décadas do século 20.
Voltando aos nossos tempos de hoje, Mukwege percebeu, ao longo do tempo, que recuperar a saúde das vítimas não era suficiente. Apesar de curadas dos ferimentos, as mulheres que recebiam alta eram ignoradas pela sociedade, que não enxergava mais nelas a capacidade de integrar aquele grupo.
Foi por isso que o Hospital de Lermera abriu duas novas frentes de trabalho: primeiro, criou uma equipe de psicólogos e psiquiatras que trabalha a parte emocional das pacientes e as ajuda na superação dos traumas. Segundo, um grupo de assistentes sociais, ativistas e advogados auxilia as vítimas a buscarem a devida reparação na justiça. “Elas deixam de enxergar a culpa nelas mesmas e passam a acusar seus agressores”, diz o médico.
É óbvio que um trabalho tão relevante incomodou muita gente poderosa. Em 2012, Denis Mukwege foi alvo de um atentado terrorista alguns dias após fazer um discurso na Organização das Nações Unidas (ONU), em que denunciou muitos desses grupos criminosos. Ele escapou ileso, mas um de seus assistentes morreu no episódio.
Uma guerra silenciosa
E olha que essa realidade do Congo não está tão longe assim de nós aqui no Brasil. Uma pesquisa do Instituto Datafolha feita a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que 27,4% das brasileiras já sofreram algum tipo de violência. Sim, uma em cada quatro mulheres passou por alguma agressão em nosso país.
Em outro levantamento, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada mostra que, entre 2011 e 2014, 69,9% dos estupros cometidos no Brasil foram com crianças e adolescentes. No geral, 15% desses atos criminosos foram praticados coletivamente e 25% dos autores eram conhecidos pela vítima. Dados tão lamentáveis parecem se repetir nos Estados Unidos, na Ucrânia, no Iraque, no Sudão…
Diante de tanta calamidade nos quatro cantos do mundo, Mukwege levanta uma bandeira contra a masculinidade tóxica. “Todos nós temos a obrigação de lutar contra a desigualdade de gênero, que está por trás de todos esses males. Na maioria dos países, a mulher é vista como um objeto que nós homens podemos descartar quando quisermos.
Precisamos incentivar que elas se tornem líderes em suas áreas para um dia alcançarmos uma sociedade mais igualitária.” Uma lição valiosa de um ser humano notável.
Por André Biernath