Nova geração revê ‘masculinidade tóxica’; em estudo, 70% relatam serem treinados a ‘ser macho’

30 de agosto, 2019

Sondagem entrevistou mais de 19 mil pessoas do sexo masculino e virou documentário

(Folha de S. Paulo, 30/08/2019 – acesse no site de origem)

Fui ensinado desde menino que ser homem exige engolir o choro e ser muito forte. Não sou o único.

Uma enquete de âmbito nacional mostra que 72% dos quase 20 mil homens brasileiros que responderam foram ensinados a não demonstrar nenhuma fragilidade. O problema continua: 60% dos entrevistados também foram instruídos a não expressar emoções.

Mas o que é ser homem, afinal? Essa é a resposta que ao menos cem grupos de homens espalhados pelo país procuram. Os encontros são um fenômeno novo no Brasil e buscam construir uma maneira saudável de ser homem usando uma ferramenta potente: a escuta.

Em São Paulo, o terapeuta Fábio Sousa, um homem negro e carinhoso, lidera um desses grupos —do qual faço parte.  O grupo foi fundado em 14 de abril de 2019, quando nove homens se encontraram para discutir seu papel no mundo. Desde então, nós nos reunimos quinzenalmente.

O embrião da ideia de Sousa para o grupo veio de uma conversa de domingo com sua companheira, quando o estupro coletivo de uma adolescente no Rio ganhou a atenção nacional, em 2017. Ele escreveu em uma rede social que se sentia impotente e desalentado diante do episódio, sem conseguir digeri-lo.

“A minha companheira me trouxe várias questões do feminismo e como isso implica na relação com os homens. Eu falei para ela do caso e ela me questionou: ‘o que você vai fazer com tudo isso?’”

Ao revisitar o que havia escrito cerca de um ano depois, e ainda sem resposta para a própria pergunta, veio a iniciativa para criar o grupo.

De acordo com a enquete “O Silêncio dos Homens”, realizada pelo site Papo de Homem, 60% dos respondentes —homens de mais de 14 anos, com acesso à internet, que estejam ao menos no ensino médio e com padrão de idade, raça e região do país que reflete o da população geral—gostariam de se juntar a um desses grupos.

Em parte isso se deve à solidão —40% dos mais de 19.800 entrevistados por meio de um longo questionário online afirmam que se sentem solitários sempre ou com muita frequência. O nível de confiança da enquete é de 95%, segundo os pesquisadores.

A solidão é algo que conheço bem. Sousa partilha deste sentimento, assim como Guilherme Valadares, fundador do Papo de Homem e um dos realizadores da sondagem e do documentário homônimo. Ele conta que era frustrado por não ter características associadas ao “ser homem”, e por isso se sentia só. A situação escalou e ele se tornou um adulto agressivo nas relações.

“Minha performance de masculinidade entrou realmente em xeque depois que conquistei o que, em minha imaginação, me tornaria um homem de verdade. Fui agressivo em minhas relações amorosas, com amigos no trabalho, tive comportamentos autodestrutivos”, relata Valadares.

“Homem que ‘sente demais’ é estranho, é fresco. Meu mundo emocional era, em grande parte, colorido pela emoção mais socialmente aceita para homens, a raiva ”

O jornalista e correalizador do documentário Ismael dos Anjos explica por que a violência se tornou uma linguagem da masculinidade tóxica.

“Esse homem com comportamentos tóxicos não sabe como, e não tem recursos, para conversar, resolver as coisas no diálogo, escutar e entender outras pessoas. O homem está acostumado a se fazer valer no exercício de força.”

Por “masculinidade tóxica”, entende-se um conjunto de hábitos que impõem o machismo, como esperar que mulheres assumam as tarefas de casa, buscar controlar suas roupas e ações, impor a palavra final e tratar mulheres com agressividade física ou psicológica, reduzindo-as (ou tentando reduzi-las) a um papel subserviente.

Sousa diz que o homem perdeu sua função social de provedor, ainda que vivamos em uma sociedade predominantemente patriarcal, “a identidade do homem está ligada às performances de masculinidade. Quando há um movimento contrário [de as mulheres assumirem papeis relevantes] é possível que o homem siga por caminho mais destrutivo”, aponta.

A afirmação de Sousa coincide com a declaração do ministro Sergio Moro, no último 7 de agosto, de que os homens reagiam com violência por, talvez, se sentirem intimidados. A frase, em evento para marcar os 13 anos da Lei Maria da Penha, provocou reações extremadas nas redes. Mas condiz com o diagnóstico percebido pelos homens que frequentam os grupos sobre masculinidade.

Não somos ensinados a falar sobre o que sentimos e, de acordo a sondagem, 40% dos homens nunca ou raramente conversam com amigos sobre seus medos, dúvidas e obstáculos. Seis em cada dez homens afirmam lidar com distúrbios emocionais como ansiedade, depressão, vício em pornografia, insônia, abuso de substâncias, apostas e jogos. ​

Além disso, homens vivem cerca de sete anos a menos que as mulheres e se suicidam quatro vezes mais, segundo o IBGE e o Ministério da Saúde. Para a equipe do documentário, isso pode ser explicado pela ausência da busca por diagnóstico por homens, por medo de aparentar vulnerabilidade e por dificuldade de entender os próprios sentimentos.

Um estudo da Associação Americana de Psicologia aponta que 80% dos homens tem alexitimia, ou seja, são incapazes de reconhecer o que sentem. Na prática, isso quer dizer que medo, frustração, dor, ansiedade, são todas uma única coisa inominável e, portanto, difícil de lidar. Essa dificuldade para expressar sensações pode levar à violência.

Os homens são os que mais matam e os que mais morrem. Segundo o Atlas da Violência de 2017, 92% das vítimas dos 61.283 assassinatos no país em 2016 eram homens, e, destes, 74,5% eram negros. O mesmo perfil o perfil dos homens assassinados se repete quando olhamos para os autores destes crimes, de acordo com um estudo da FGV.

Além disso, o número de feminicídios no país também é expressivo. A OMS (Organização Mundial da Saúde) aponta que o Brasil é o quinto país com o maior número desse tipo de crime, que pressupõe a mulher ser assassinada em decorrência de sua condição de mulher. É uma taxa de 4,8 mulheres mortas para cada 100 mil habitantes. Na maior parte dos casos, os agressores são familiares (50,3%) ou parceiros e ex-parceiros (33,2%).

A promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo Gabriela Mansur desenvolveu um projeto para que homens enquadrados na Lei Maria da Penha por agressão a mulheres participem de discussões quinzenais sobre masculinidade e gênero. O projeto se tornou a Lei nº 16.732 de 2017 e já apresenta resultados. A reincidência dos condenados por agressão no âmbito do projeto caiu de 65% para 2%.

HOMENS NEGROS, NÃO HETEROSSEXUAIS E TRANS

Anjos aponta que o documentário traz vivências importantes para se discutir o lugar do homem negro dentro da caixa do “o que é ser homem”.

“É comum, entre homens negros, ouvirmos ou sentirmos que, para alcançar a construção do que a gente imagina ser um homem, deveríamos ser duas ou três vezes melhor que os outros”, afirma.

“Isso vale para o caminho de ascensão social, de busca por algum sucesso, mas também vale para os estereótipos nocivos ligados às masculinidades, como aguentar o tranco, estar sempre pronto e ativo sexualmente, se impor fisicamente e por aí vai.”

Não se trata de um questionamento novo —o ex-presidente americano Barack Obama, negro filho de mãe branca e pai negro que o deixou na infância, abordava a questão com frequência—, mas que permanece necessário.

A masculinidades negra, no documentário, é abordada pelo sociólogo Túlio Custódio. Ele sugere que os negros buscam se aproximar do que é ser homem para deixarem a condição de negros construída por um racismo estrutural.

“A categoria existencial do homem é a do homem branco. Esse é o homem ideal. O homem negro nunca vai ser o ideal. Esse negro sempre estará correndo atrás do prejuízo, buscando ocultar o lugar do homem negro e se aproximar do branco”, reflete.

Há também que se falar sobre as masculinidades de homens não heterossexuais e transexuais. Homens trans, por exemplo, se deparam com os padrões de masculinidade quando se colocam como homens para o mundo. É o que diz o cenotécnico Lam Matos.

“Quando eu me coloco como homem para a sociedade, ela me cobra uma postura de homem. É muito recorrente entre homens trans que começam a assumir papéis masculinos que parem de chorar. Eu parei de chorar; me vejo obrigado a seguir um padrão para ser aceito como homem”, conta no filme.

O documentário “O Silêncio dos Homens” estreou nesta quinta (29) em 239 sessões públicas, em espaços abertos, registradas por grupos de homens e mulheres em todo o país.

Agora, com o filme pronto e disponível gratuitamente no YouTube, Valadares diz que o sonho cresceu. “Todo o projeto está conectado ao nosso sonho, um tanto utópico, de ver surgir pelo menos um grupo de transformação das masculinidades em cada um dos 5570 municípios brasileiros.”

Por Matheus Moreira

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