Com uma mudança de metodologia na contagem de dados, o número de homicídios dolosos —com intenção de matar— contra mulheres passou de 71 entre janeiro e julho do ano passado para 227 no mesmo período deste ano. A SSP (Secretaria da Segurança Pública) informou que o salto ocorreu porque, pela nova metodologia, é possível verificar micro dados diretamente dos boletins de ocorrência.
(Universa, 03/09/2019 – acesse no site de origem)
A página de estatísticas da pasta, que foi atualizada na tarde de hoje, depois de o UOL questionar a secretaria sobre a ausência de dados, aponta um acréscimo vertiginoso, que chegaria a 220%. Dados do governo paulista, que não estão expostos na página, mas que foram enviados à reportagem após o questionamento, apontam que, na verdade, no ano passado houve 282 homicídios dolosos contra mulheres, não 71.
Questionada, a SSP não soube informar por que os dados dos anos anteriores estão expostos abaixo do que representaria o número real. A divulgação dos dados de violência contra a mulher é baseada na lei número 14.545, de 14 de setembro de 2011, de autoria da deputada Analice Fernandes (PSDB). Segundo a lei — que fica exposta no topo da página da SSP —, o poder executivo deve manter organizado um banco de dados destinado a dar publicidade aos índices de violência contra a mulher, a fim de instrumentalizar a formulação de políticas de segurança pública.
Homicídios dolosos contra mulheres em 2019:
Janeiro: 33
Fevereiro: 27
Março: 38
Abril: 42
Maio: 34
Junho: 35
Julho: 18
Homicídios dolosos contra mulheres em 2018:
Janeiro: 5
Fevereiro: 10
Março: 9
Abril: 26
Maio: 10
Junho: 4
Julho: 7
O secretário-executivo da PM (Polícia Militar), coronel Álvaro Camilo, afirmou à reportagem que a equipe técnica da SSP verá a metodologia utilizada ano passado para entender os motivos das diferenças entre os dados. “É possível chegar aos dados pelo perfil dos homicídios. Vamos rever os dados do ano passado e não há problema nenhum em corrigir os dados do ano passado. Se for o caso, vamos corrigir os dados do ano passado. Vamos até estudar uma forma de apresentar isso melhor”, argumentou.
Segundo a promotora de Justiça Gabriela Manssur, o número de feminicídios já está comprovado. “Muito embora os inquéritos policiais tipifiquem num primeiro momento como homicídio doloso, ao enviá-lo ao Ministério Público, cadastramos no nosso sistema como feminicídio, porque é uma morte violenta pelo fato de ser mulher”, disse.
De acordo com a promotora, “é triste que ainda não tenha investigação sob a perspectiva de gênero, para saber se a vítima tinha relacionamento abusivo e se estava num ciclo de violência”. Isso, segundo ela, seria importante para planejar políticas públicas de prevenção e de enfrentamento à violência contra as mulheres.
Juliana Gentil Tocunduva, promotora de Justiça do Tribunal do Júri de São Paulo, afirmou que o dado, que “mostra um expressivo aumento”, vai ao encontro da ausência de políticas públicas de prevenção. “E de mudança de mentalidade da sociedade como um todo, porque essa violência é machista, fruto da posse, do ciúmes. E há a necessidade de se enfrentar essa situação para prevenir a prática desses crimes”, disse.
Fabiana Paes, promotora de Justiça do Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica, disse que “o feminicídio é apenas a ponta do iceberg”. “Quando ocorre o feminicídio, é a demonstração de que não houve trabalho eficaz na prevenção, oitiva e investigação. Existe certamente falhas no estado brasileiro, num geral, porque somos o quinto país que mais mata mulheres no mundo. Esses dados são inaceitáveis”, afirmou
SSP diz que houve redução de homicídios
A SSP informou que “a comparação sugerida pela reportagem é equivocada, pois contempla bases de dados distintas” e que “uma nota técnica sobre a nova metodologia também será inserida na referida página”. No site, não há informações sobre isso. “Com todo respeito à linha editorial do portal UOL, reiteramos o alerta para o erro em relação aos números”, complementou a pasta.
Por meio de nota, a secretaria informou outros dados, que não estão públicos. “Nos primeiros sete meses do ano, foram registrados 227 homicídios dolosos com vítimas mulheres no estado, ante 282 em 2018. Uma redução de 19,5% no período. Do total de ocorrências no período, 89 foram registradas como feminicídios e todas foram esclarecidas.”
Ainda segundo a pasta, um novo modelo de apresentação dos dados estatísticos de violência contra a mulher está sendo implantado. “Os dados de 2019 da página ‘violência contra a mulher’ já seguem essa nova metodologia, que, de forma automática e dinâmica, possibilita verificar micro dados diretamente dos boletins de ocorrência, o que não era possível na metodologia anterior. De forma escalonada, os dados de anos anteriores serão convertidos para o novo modelo, permitindo em breve a comparação histórica.”
Dados ocultados pela gestão Doria
Enquanto os dados de todos os indicadores criminais que estão em queda são divulgados pelo governo Doria, o número de homicídios contra as mulheres estava ocultado até a tarde de hoje. Na aba do site de estatísticas da SSP que deveria mostrar esses indicadores, não havia atualização desde dezembro do ano passado.
Para Samira Bueno, diretora do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), “preocupa muito essa falta de transparência, em especial dos indicadores que têm crescido. A não atualização do site revela pouca transparência do governo.”
De acordo com ela, o aumento no número de feminicídios vem sendo observado nos últimos meses. “Os esforços do estado têm que ir além de criar delegacias. Não é suficiente quando a mulher não se sente encorajada para ir à delegacia. Manter as delegacias abertas é uma política importante, mas é preciso fazer o acolhimento dessa mulher. O estado tem, sim, o dever de proteger as mulheres, mas tem sido incompetente”.
O secretário-executivo da PM, coronel Álvaro Camilo, afirmou que o FBSP tinha os mesmos números apresentados à reportagem sobre o assunto. “Não tem aumento de 200% no homicídio contra a mulher. A forma como esses dados foram colocados foi metodologicamente diferente”, disse.
Segundo a promotora Fabiana Paes, toda administração pública deve prezar pela transparência e publicidade dos dados. “É um preceito importante. No meu entendimento, de forma genérica, para qualquer governo de estado, em qualquer esfera, a administração pública tem que se pautar pela transparência. É parte da democracia”, disse.
“É importante manter as estatísticas atualizadas. Pois se não temos como ver, não temos como saber o que fazer. Os dados são importantes para traçar política pública de combate à violência contra a mulher. Se não há diagnóstico, não há remédio”, complementou a promotora.
Outro lado
Por meio de nota, a SSP informou que, “por um erro de processo interno, os dados de violência contra as mulheres — apurados, compilados e divulgados regularmente — ficaram indisponíveis para visualização no portal. A SSP agradece ao UOL por ter apontado a falha e informa que já sanou o problema.”
“Em que pese o erro, a Secretaria da Segurança mantém seus dados de qualquer tipo de ocorrência abertos e disponíveis para a população desde 2001. Somente neste ano e especificamente sobre violência contra a mulher, foram atendidos mais de 120 pedidos da imprensa e dez demandas de cidadãos”, complementou a pasta.
Ainda segundo a secretaria, “os dados estatísticos de violência contra a mulher apurados de forma contínua dão importante subsídio para as políticas públicas de segurança desta gestão. De janeiro para cá, apenas na área da segurança, este governo já ampliou de uma para 10 as delegacias de Defesa da Mulher 24 horas em todo o estado”.
A SSP informou que, nos primeiros sete meses do ano, todas as ocorrências de feminicídio registradas foram esclarecidas.
Por Luís Adorno