A advogada afro-americana Patricia Sellers é especialista em gênero no Tribunal Penal Internacional, onde ajudou a julgar casos históricos de estupro
(O Globo, 11/09/2019 – acesse no site de origem)
A advogada criminal internacional, assessora especial para gênero no Tribunal Penal Internacional (TPI) e professora da Universidade de Oxford, Patricia Sellers, viveu no Brasil na época da redemocratização e sentiu “os ventos da democracia”. Na Europa, atuou em casos importantes no TPI, trabalhando pelo reconhecimento do estupro como crime contra a Humanidade e crime de genocídio.
Nesta semana, voltou ao Rio de Janeiro para participar do colóquio “Legislação antirracista: ensino e pesquisa”, direcionado a estudantes de Direito e que terminou nesta terça-feira, e conversou com O GLOBO sobre racismo, feminismo, estupro e democracia.
Você passou três anos no Brasil. Como foi a experiência?
Foi muito interessante porque pude comparar e ver similaridades entre o Brasil e a América. As principais semelhanças entre norte-americanos, latino-americanos e caribenhos é que essas terras eram habitadas pelos povos indígenas, com civilizações e cidades como Cuzco e Machu Picchu. A comida reflete isso. Já a influência africana na nossa cultura gerou a música soul, o samba e o jazz. O que também temos em comum foi não ter dado poder econômico e político para esses indígenas, ter tido trabalho escravo dos negros, e descendentes deles, que viveram formas legais de apartheid e formas sociais de discriminação que persistem até hoje.
Como é esse apartheid social?
Nos EUA, antes de 1967, o casamento interracial era ilegal, as pessoas não podiam viver em certas áreas nem ser admitidas em certas escolas, isso é uma discriminação legal. Mas depois ficou a discriminação social. Tem uma expressão interessante aqui no Brasil que é “o lugar do negro”, certos lugares em que você não espera ver negros. Pode não ser ilegal nos livros, mas há uma discriminação social. Quando a escravidão foi abolida, as descendentes nas áreas urbanas viraram empregadas em casas de famílias ricas, e aqui no Brasil eu vejo isso. Eu sou da segunda geração de universitárias, minha mãe era professora. Nos EUA, as negras podiam ser professoras ou enfermeiras, eram as profissões aceitas, não médicas, advogadas. Quando vivi aqui, via as descendentes passeando com os cachorros dos patrões às 7h e os trabalhadores da praia majoritariamente negros.
A senhora frequentou uma universidade de Direito que seria “historicamente negra”. No Brasil não temos isso. Temos uma política de cotas raciais. Como a senhora avalia o acesso à educação?
Nós também temos cotas nas universidades tradicionalmente brancas, para negros, latinos, já tivemos para judeus. A maioria das universidades é branca, mas algumas são historicamente negras, como Howard, Lincoln, Bennett College. Aqui vocês ainda discutem o sistema de ações afirmativas. Nos EUA tinha a combinação das duas coisas. Se eu acho que funcionam? No geral, sim. Se eu acho que tem problemas? Sim. Nos EUA, as ações afirmativas sempre foram atacadas. Se uma pessoa negra tira o lugar de uma branca, dizem que não é justo. Bom, não perguntaram se era justo eu dar 300 anos de trabalho não remunerado. Não estou tirando o lugar de alguém, estou ganhando um retorno muito pequeno após gerações que não ganharam nada. Um monte de gente vai às universidades, e não são necessariamente os melhores, mas porque os pais frequentaram, ou avós, então esse legado é como um ponto extra. É um tipo de ação afirmativa, mas ninguém nunca viu isso como uma vantagem a ser questionada, que a outra pessoa devia ter o mesmo direito.
Como a senhora vê a questão do feminismo negro? É possível haver um movimento que contemple todas as mulheres?
Algumas mulheres tentam fazer como se o movimento feminista fosse completamente universal, e não é. As mulheres brancas pensam que falam pelas mulheres de forma geral, mas sabemos que não é verdade. Como o feminismo afeta uma mulher que trabalha num estado pobre e rural? É preciso ver a situação econômica, geográfica, racial, e ter certeza que esse feminismo incorpora a minha experiência, mesmo que falemos de discriminação contra as mulheres como um todo. Acho que incorporar experiências políticas e emocionais variadas enriquecem o feminismo. Um feminismo interseccional porque a sociedade tem intersecções.
Dou um exemplo: em muitos lugares do mundo, nos anos 1970 e 1980, havia um movimento grande sobre violência doméstica. Na mesma época, as mulheres negras, não importa se do Brasil, dos EUA ou de uma casta na Índia, eram estupradas, abusadas ou apanhavam da polícia. Mas isso não entrava como uma questão essencial de violência contra a mulher — hoje é mais. Então, a questão que se colocava era: como essa violência tão constante contra as mulheres negras pode não ser uma coisa fundamental, não que a violência doméstica não seja importante, mas como falamos da violência na esfera privada enquanto ela acontece na esfera pública, institucional? Isso nunca foi um assunto principal.
Como chegou ao Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia?
Quando fui à Bélgica com meu marido soube do Tribunal Internacional para Iugoslávia e fiquei animada em poder voltar ao direito criminal. Os promotores acabaram me chamando e pediram que eu me juntasse a eles como defensora pública, já tinha experiência com questões femininas por causa do Brasil. Foi assim que entrei na área criminal internacional e me pediram particularmente para trabalhar com a parte de violência sexual. A estimativa é de que tenham ocorrido mais de 20 mil estupros na guerra da Iugoslávia. Na época, a rede CNN mostrava fotos da guerra, o movimento feminista era muito mais global e questionava as Nações Unidas sobre os direitos femininos, olhando para a situação das mulheres nos países em guerra. Trabalhei desenvolvendo estratégias legais para trazer esses casos, como Kunarac (a primeira vez em que estupro foi tratado como um crime contra a humanidade), à corte.
Depois veio Ruanda.
Sim, oito meses depois, Ruanda teve o genocídio e o mesmo promotor assumiu e eu me tornei conselheira de gênero para Ruanda. Trabalhei no caso Akayesu, relacionando violência sexual com genocídio (esse foi o primeiro caso em que o estupro foi considerado uma forma de genocídio). Assim eu comecei nessa área do Direito e trabalho com isso há 30 anos, fazendo consultorias, dando aulas e aconselhando cortes criminais.
Esses casos foram marcantes no entendimento do estupro como algo criminoso numa guerra. Como ocorreu essa transformação?
O que eu gostaria de dizer primeiro é que o estupro é um crime de guerra há centenas de anos. No começo do século XIX, começaram a falar de honrar a família, que era uma referência à violência sexual. Então é falso dizer, adoraria receber o crédito, que o estupro virou crime de guerra nas cortes de 1990. Nos textos do Julgamento de Tóquio (1946-1948), você tem que parar, fechar o livro e respirar, porque é cheio de estupros, é estupro demais, centenas e centenas. Nos Julgamentos de Nuremberg (1945-1946) não tinha a palavra estupro, usavam vários eufemismos. Se entende o que o julgamento diz, há muitas evidências de estupro, mas havia um entendimento de que os crimes de guerra são terríveis então como lidar com cada um, como estabelecer categorias. Então pelas bases legais incluíram violência sexual e estupro numa categoria de Tratamento Desumano, que englobava estupros, forçar prostituição, abusos de prisioneiras etc.
Em 1994, no Tribunal da Iugoslávia, tínhamos que procurar uma nova abordagem. “O que você quer? Acontece na guerra.” Sim, acontece na guerra e é crime. Se você olhar nos Protocolos da Convenção de Genebra de 1977 falam explicitamente de estupro. Mas, nas Convenções de 1949 (tratados internacionais que contêm as normas mais relevantes que limitam as barbáries da guerra) não havia isso explícito. Então eu tive que criar a estratégia legal para lidar com violência sexual.
Como julgar um crime sem que exista uma palavra para defini-lo?
Tem que entender o que as palavras diziam em cada época. Em 1919, depois da Primeira Guerra Mundial, os vitoriosos resolveram que iriam julgar crimes de guerra. Fizeram uma lista de 32 crimes. Sabe qual era o quarto na lista? Estupro. Ninguém precisava dizer, mas todos sabiam que aquele ato era crime. Em 1949 as Convenções de Genebra não usam a palavra, mas você lê nas entrelinhas, o tratamento desumano a mulheres. Em 1929, os alemães, que haviam perdido a guerra, propuseram acrescentar uma frase nas convenções: “mulheres que sejam prisioneiras de guerra devem receber toda consideração pelo seu gênero”. Uma sentença interessante. O que quer dizer? “Parem de estuprar as prisioneiras.” Em 1945, em todas as Convenções, aparecia essa frase. Agora, depois de tantas Convenções, temos estupro, forçar prostituição, abuso sexual etc. De qualquer forma tudo é proibido.
Em 1994, eu decidi depois de fazer toda essa pesquisa que aquela conduta poderia ser julgada. A estratégia legal na Iugoslávia era investigar violência sexual, julgar e categorizar. Em Kunarac, e é famoso por isso, categorizei como violência sexual e escravidão. Ou seja, escravidão não é só trabalhar na plantação, mas tendo bebês para seus ‘donos’, se tornando escrava sexual ou ama de leite. Em Kunarac, essas mulheres da Iugoslávia de 13 a 35 anos foram mantidas num pequeno grupo que eram mantidas presas e eram levadas com esses homens que tinham acesso a elas para sexo.
No caso Akayesu, em Ruanda, muitas mulheres eram estupradas e logo depois mortas, outras não. O genocídio em Ruanda era composto basicamente por dois atos: matar e estuprar. Para haver o crime de genocídio você não precisa morrer, o primeiro ato num genocídio é matar, o segundo é criar forte dor a um membro do outro grupo, e essa definição pode servir para tortura. E violência sexual é tortura. Essa foi a estratégia.
O estupro na guerra vai além do aspecto sexual, podendo ser uma forma de punição, de poder, de fazer filhos. Dá para estabelecer esses limites?
Depende das circunstâncias. Na Iugoslávia havia rumores de campos de estupro para mulheres para ter bebês. Não achamos evidências disso, havia mulheres que eram estupradas e acabavam grávidas, mas não necessariamente elas eram mantidas escravas para ter filhos. No Camboja casais eram obrigados a ter relações porque eles queriam bebês, aí você vê a violência sexual contra a mulher e homem para produzir filhos para o grupo. Em Uganda, a milícia força meninas a viajar com ela para serem escravas sexuais e às vezes os bebês viravam parte da milícia. Há muitas razões diferentes, mas isso não necessariamente muda o fato de que eles decidiram cometer o ato e cometeram um crime de guerra.
A senhora vê essas situações se repetirem hoje?
Sim, isso ainda acontece hoje. O que me vem primeiro à cabeça é o Estado Islâmico e as mulheres yazidis, que são escravas sexuais. Elas são levadas ainda crianças e ficam com um combatente e quando ele morre ela ganha outro “marido” combatente.
Aqui no Brasil as mortes de mulheres pelos parceiros passaram a ser chamadas de feminicídio. Dar um nome específico à morte de mulheres ajuda no combate?
A America Latina está criando esse crime em que as mortes são classificadas como crimes de gênero. Agora na França, oito mulheres foram mortas assim neste ano, no Reino Unido já tivemos casos. A América Latina entendeu e, a Europa agora, que não é só mais uma morte individual. São mortes articuladas que fazem parte de um movimento. Isso coloca esses crimes num contexto social. É um fenômeno sociológico. Bom, tem uma lei, vamos investigar. Mas não é só uma questão de lei. O Estado tem a obrigação de mudar a cultura dos homens, as instituições têm que fazer essa mentalidade mudar para que esses crimes parem.
Como está sendo voltar ao Brasil no momento em que várias organizações reclamam das posições do governo sobre direitos humanos?
O que eu gostaria de dizer é que há muitas décadas o Brasil estava muito excitado sobre a volta da democracia, havia uma animação no ar, os ventos da democracia. Eu venho da Filadélfia, uma cidade de contradições que teve a declaração de Iindependência. E esse texto fala em “nós”. Mas quem era esse “nós”? Não queria dizer índios, escravos, mulheres… Precisamos sempre fortalecer a ideia do “nós”. Hoje contemplamos pessoas com deficência, transgêneros. Há momentos em que o entendimento da democracia passa pela definição de que é o “nós”. E quem queremos ser?
Por Constança Tatsch