Antonia Pellegrino, idealizadora do Festival#Agora, aponta proliferação, no Brasil e no mundo, de casos de violência política de gênero, estratégia que visa desestimular a candidatura feminina a cargos públicos e cercear o exercício dos mandatos das já eleitas. Tema será debatido em evento em São Paulo, nos dias 21 e 22 de setembro, com entrada gratuita. Mais informações sobre o festival aqui.
(Folha de S.Paulo, 14/09/2019 – acesse no site de origem)
O feminismo é a ideia revolucionária de que mulher não é lixo. Uma das reivindicações centrais da primeira onda feminista, que se alastrou pelo mundo a partir do século 19, foi o direito ao voto. Historicamente excluídas da República, mulheres, crianças e pessoas escravizadas não tinham cidadania —o que dirá direitos políticos.
Foram as primeiras feministas que começaram a virar a mesa do poder. Como resultado de mais de um século de lutas, mulheres de todo o mundo, paulatinamente, puderam votar. No Brasil, a conquista do voto facultativo data de 1932. E sua obrigatoriedade é universalizada na Constituição de 1946.
Oitenta e sete anos depois, chegamos aos dias de hoje. Olhando as fotografias dos espaços de poder, vemos o tamanho de nossa ausência.
As mulheres são 52% da população brasileira. Atuam em partidos políticos, sindicatos, organizações, movimentos e coletivos. Por que, então, não estão devidamente representadas nos núcleos de poder político?
Há quem ache, como o presidente do PSL, Luciano Bivar, que “mulher prefere ver o Jornal Nacional e criticar do que entrar na vida partidária”. Política “não é muito da mulher”, declarou à Folha.
Há quem pense, como a socióloga Flávia Biroli, que “há diferença entre lidar com as formas de silenciamento que constituem o ambiente político e definem suas fronteiras e presumir algum tipo de silêncio, como se as vozes contestatórias não fizessem parte do espaço público”.
Das formas de silenciamento, a violência política de gênero é a estratégia mais bem acabada. Tão sutil que o leitor talvez nem conheça o termo, embora a sua prática esteja presente em todos os espaços de poder deste país. E seja uma tendência.
Em 2016, editei um especial de sete textos sobre o tema, para o blog #AgoraÉQueSãoElas, hospedado na Folha. Entre as autoras, Marina Silva (Rede), Manuela d’Ávila (PC do B) e Patrícia Bezerra (PSDB) —a violência política não é marcada pela ideologia, mas pelo gênero.
Em um dos textos, a então senadora Vanessa Grazziotin (PC do B-AM) conseguiu explicar a violência política de gênero em pouco mais que um tuíte: “O papel deste tipo de violência é impedir as mulheres de se candidatarem, interferir no exercício de seus mandatos e, por fim, desestimular, desanimar, encurtar, abreviar a carreira política feminina. Ou seja, é uma violência exercida antes, no início, durante e no fim de um mandato, a influir no ingresso na política, na permanência e na saída/desistência da mesma”.
Tipificada legalmente em outros países, como Bolívia, México e Peru, este tipo de violência está em escalada no Brasil desde o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), quando houve clara banalização da violência política de gênero, fruto da discordância e dos discursos de ódio.
Quem não se lembra daquele adesivo de carro, onde Dilma aparece de pernas abertas para a mangueira de abastecimento do posto ser introduzida?
O tema ganhou destaque maior a partir de 2018, quando o acesso ao fundo partidário e a garantia de tempo de TV para candidatas foram aprovados pelo Superior Tribunal Eleitoral. Foi também nesse ano que a distribuição dos fundos eleitorais e a propaganda gratuita no rádio e na TV passaram a obedecer à proporção de candidatos homens e mulheres. O resultado? A ampliação da bancada feminina em 50% no Congresso Nacional.
No entanto, 2018 também foi o ano do assassinato de Marielle Franco. Embora ainda não saibamos quem mandou matá-la nem os motivos, podemos afirmar que ela também foi vítima de violência política de gênero.
No primeiro dia de campanha no ano passado, Talíria Petrone (PSOL), hoje deputada federal, singrava as águas da baía da Guanabara, rumo à panfletagem no Rio de Janeiro, quando foi hostilizada por um policial militar. O sujeito sacou a arma na barca lotada e, ao ser alertado de que poderia matar alguém, afirmou que “ideologia também mata”. A violência exercida para coibir mulheres de fazer campanha é violência política de gênero.
“Deputada relata ameaças de morte por ministro após denunciar laranjal do PSL”, informou reportagem da Folha em 13 de abril deste ano. Eleita com 48 mil votos, Alê Silva foi a primeira congressista a revelar às autoridades a existência do esquema de laranjas do PSL de Minas, comandado nas eleições de seu estado, pelo atual ministro de Jair Bolsonaro, Marcelo Álvaro Antônio (Turismo).
Interferir no exercício do mandato para constranger, punir, desestimular —com o objetivo de encurtar ou abreviar a carreira política de uma mulher— é violência política de gênero.
São inúmeros os exemplos, e você conhece muitas dessas histórias. Embora tenham formas distintas, todas têm a mesma raiz, o mesmo objetivo: limitar a democracia.
O Instituto Alziras trabalha para aumentar a representação feminina na política por meio do fortalecimento de mandatos e candidaturas de mulheres. Em 2018, ao buscar responder à pergunta
“Quem são as prefeitas do Brasil?”, descobriu que a falta de recursos para campanhas é a maior dificuldade das candidatas que almejam administrar uma cidade. O assédio e a violência simbólica no espaço político são outros poderosos entraves.
A violência política de gênero é a resposta do establishment às mulheres que pretendem alargar o sentido da experiência democrática ao ocupar cadeiras que historicamente pertencem aos homens brancos e proprietários. E a resposta será ainda mais enfática se estas mulheres forem feministas antirracistas.
A nova política são as mulheres e todas as minorias históricas que, por representarem agendas e expectativas antes excluídas do debate, tendem a provocar mudanças, e não apenas serem “caras novas”. Inibir o florescimento da nova política é a função da violência política de gênero. Razão pela qual ela tende a crescer, no Brasil e no mundo.
A relação de Trump com “o esquadrão” é um caso exemplar. Embora tenha sido um dos artífices da campanha difamatória sobre a nacionalidade do ex-presidente Obama, Trump nunca pediu: “send him back”. Não hesitou, porém, nem em mandar “o esquadrão” voltar aos lugares de origem, nem em silenciar diante do coro “send her back” que seus seguidores entoaram em comício recente para a deputada Ilhan Omar (Minnesota), nascida na Somália, naturalizada norte-americana.
Omar, Alexandria Ocasio-Cortez (Nova York), Rashida Tlaib (Michigan) e Ayanna Pressley (Massachusetts) são mulheres de minorias raciais e religiosas. Ficaram conhecidas como “o esquadrão” por colocarem suas novas vozes contra o governo, o que permitiu aos democratas retomar o controle da Câmara após as eleições do ano passado.
Não à toa, Trump apontou sua máquina de mover ódio na direção delas, a ala mais à esquerda do partido e, para alguns, também seu futuro. “O esquadrão” é um acúmulo de campos discursivos em ação: são mulheres, negras, uma latina, outra imigrante, outra muçulmana. Seus corpos e vozes são a contestação do status quo por excelência. Ameaçam aquilo que o conservadorismo supremacista branco tem medo de perder: o poder. E, para Trump, devem ser tratadas como mulheres perigosas.
A munição de Trump contra “o esquadrão” são sucessivos atos de violência política de gênero, que reverberam e estimulam a misoginia e o ódio às minorias entre seus eleitores. O objetivo é denegrir tanto a imagem do “esquadrão” a ponto de inviabilizar qualquer oponente democrata nas eleições presidenciais de 2020. É a violência política de gênero como tática de guerra.
Não é aceitável que esse seja o custo da participação feminina na política. Toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, seja na esfera pública ou privada. A violência política de gênero “tem a dupla finalidade de constranger/punir a mulher por ocupar um espaço masculino e a de restringir sua participação e sua possibilidade de tomada de decisões que afetem a sociedade em geral”, diz o estudo das Alziras.
Para 74% dos brasileiros, só há democracia de fato com a presença de mais mulheres nos espaços de poder e tomada de decisão, segundo pesquisa do Instituto Patrícia Galvão/Ibope. Oito em cada dez brasileiras creem que metade das cadeiras legislativas deveriam ser destinada às mulheres.
No entanto, de acordo com a renomada organização internacional Inter-Parliamentary Union, nosso país ocupa, em 2019, a posição 133º no ranking Mulheres no Parlamento. Vale notar que países no topo da pirâmide do sexismo, como a Arábia Saudita, apresentam um desempenho melhor na leita.
Cabe à imprensa e aos feminismos desnaturalizar episódios de violência política de gênero, para que, como sociedade, possamos enfrentar a tragédia da sub-representatividade. E às mulheres cabe traçar estratégias para superar esta forma vil de depreciar ou anular nosso pleno exercício político.
Este é o convite que o Festival#Agora, realizado pela plataforma #AgoraÉQueSãoElas, no CCSP, em São Paulo, em 21 e 22 de setembro, faz a toda a sociedade. Que possamos, ao longo das oito mesas de debate, entender os diferentes aspectos da violência política de gênero e como ela impacta não só a vida das mulheres que participam da política mas também a democracia brasileira. Venha, a entrada é gratuita.
Por Antonia Pellegrino