Levantamento da Gênero e Número a partir de 1949 identificou 275 propostas que mencionam a palavra aborto; 80% dos autores são homens
(Gênero e Número, 25/09/2019 – acesse no site de origem)
Nunca a Câmara dos Deputados apresentou tantos projetos de lei (PLs) direta ou indiretamente relacionados ao aborto como em 2019. E nunca tantos foram contrários à legalização da interrupção da gravidez. Desde fevereiro, quando começou o ano legislativo, foram 28 propostas que mencionam a palavra aborto, sendo que 43% (12) buscam restringir os direitos à interrupção voluntária da gravidez. Seis desses projetos foram apresentados pelo PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro. Uma mulher, a deputada federal Chris Tonietto (RJ), é a autora do maior número de matérias do partido com esse viés (três), segundo levantamento da Gênero e Número.
Tonietto, que obteve 38.525 votos na última eleição, é uma advogada católica que, durante sua campanha eleitoral, defendia a pauta da criminalização do aborto como uma das bandeiras de sua candidatura: “Um dos principais motivos que me levaram a concorrer ao cargo de deputada federal foi a firme decisão de lutar pela vida – desde a concepção – daqueles que, dentro do útero de suas mães, não têm voz e precisam da nossa para ter seus direitos assegurados pela lei”, em disse em entrevista à Gazeta do Povo em novembro de 2018.
Os projetos de lei apresentados pela deputada buscam assegurar a definição da vida desde a concepção (PL 4150/2019), instituir a Semana Nacional do Nascituro (PL 4149/2019) e revogar o dispositivo que trata do aborto em caso de estupro e de risco para a mulher (PL 2893/2019). Se aprovadas, as propostas retiram o direito à interrupção da gravidez de casos já previstos pelo Código Penal em 1940.
Na justificativa do PL 2893/2019, a deputada prevê a revogação do artigo 128 do Código afirmando que a vida do feto em nenhuma situação coloca a vida da mulher em risco, apoiada na suposta conclusão de médicos do século passado, e traz depoimentos de mulheres concebidas por gravidez decorrente de violência sexual para justificar a retirada do direito das vítimas de estupro.
“O autor do estupro ao menos poupou a vida da mulher – senão ela não estaria grávida. Pergunta que não quer calar: é justo que se faça com a criança o que nem sequer o agressor ousou fazer com a mãe: matá-la?” – diz o Projeto de Lei 2893/2019 de autoria de Chris Tonietto (PSL/RJ)
No mesmo partido, outro parlamentar do Rio apresentou dois projetos contrários ao aborto. O PL 261/2019, de autoria do deputado Márcio Labre, proíbe que médicos prescrevam métodos contraceptivos, classificados por ele como “microabortivos”. O veto descrito no projeto valeria para o comércio, propaganda, distribuição ou a doação da pílula do dia seguinte, pílula de progestógeno (minipílula) e até mesmo do DIU (dispositivo intrauterino). Depois da repercussão negativa, o deputado retirou o projeto de lei.
O presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, Diego Garcia (PODE/PR), o ex-vice líder do governo na Câmara dos Deputados, Capitão Augusto (PR/SP), e Filipe Barros (PSL/PR) também apresentaram este ano projetos de lei contrário ao aborto.
“Essa investida antidireitos está colocada nesta legislatura. O que não conseguimos balizar ainda é força desse movimento e sua capacidade de aprovação. O governo colocou a agenda econômica como prioritária, mas algumas tramitações estão relacionadas à pauta moral, o que mostra que ela está caminhando e que pode ser moeda de troca para votos sobre outros temas, como a reforma da previdência”, diz Masra Abreu, membro do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), à Gênero e Número.
Quem pauta o aborto?
Segundo levantamento, os homens são 80% dos parlamentares que apresentaram projetos de lei direta ou indiretamente relacionados ao aborto. “Os homens estão bem organizados. Eles vêm das igrejas e dos redutos fundamentalistas da sociedade para aprovar essas pautas. Enquanto isso, na bancada feminina as deputadas não conseguem mais pautar uma agenda comum. Existe uma disputa clara e há um esvaziamento das pautas das mulheres”, analisa Abreu.
Para a deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), “os homens são os autores de propostas que restringem o direito à interrupção voluntária da gravidez, porque não conseguem compreender o aborto como uma questão de saúde pública. Não se trata de uma apologia ao aborto como método de escolha ou contraceptivo, mas sim do direito à interrupção da gravidez fora da clandestinidade e ilegalidade que têm levado as mulheres à morte”.
A líder da Minoria na Câmara dos Deputados afirma que falta unidade na bancada feminina para pautar essa questão: “A atitude suprapartidária que temos no Congresso é muito importante em diversos temas, como o direito à creche, a luta contra a violência e os direitos relacionados ao trabalho. Temos a maior bancada feminina da história do Congresso, mas cresceu o número de mulheres no campo da direita, por isso, na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, temos mulheres fundamentalistas que são contra”.
Masra Abreu observa que o momento não é propício à apresentação de propostas favoráveis à legalização do aborto: “Qualquer deputado ou deputada sabe que apresentar um projeto de lei pela legalização ou até de melhorias de normas técnicas e garantia de serviço legal é um isolamento político. Não há força no Congresso para debater esse assunto e a forma como é apresentado tem que ser muito bem avaliada”.
Mudança de narrativa na discussão do aborto
Nas últimas décadas, aumentou significativamente o número de projetos de lei que tratam da interrupção voluntária da gravidez. Foram apresentadas 275 propostas mencionando a palavra aborto de 1949 a agosto de 2019, segundo o levantamento realizado pela Gênero e Número. Os projetos de lei direcionados ao direito de abortar tiveram seu auge na década de 1990 (40%). Já as iniciativas que assumiram viés narrativo contra o aborto, favorável ao aumento da punição e pela proibição do aborto já legalizado vêm aumentando, passando de 6% nos anos 1990 a 44% na década de 2010.
Para Masra Abreu, essa mudança de viés sobre a pauta tem explicação. Na década de 1990, quando houve um movimento de redemocratização em parte da América Latina, mulheres se organizaram internacionalmente em tratados e congressos internacionais para discutir o avanço de direitos, entre eles os sexuais e reprodutivos.
Só que nos anos 2000, segundo Abreu, houve um “efeito blacklash” (retrocesso), em que setores conservadores ganharam força como aliados dos partidos de esquerda. “Em 2007, houve um momento importante em que foi dado muito poder a grupos conservadores que até então não tinham muita interferência direta no Estado. Naquele ano, representantes do governo brasileiro e do Vaticano assinaram um acordo que ratifica normas da atuação de religiosos no país. Esse acordo acabou dando um poder muito grande para a Igreja Católica dentro do Estado”, conta.
Em contraponto a isso, lideranças evangélicas também começaram a avançar em espaços institucionais, principalmente no Congresso Nacional. “A partir da metade da década de 2000, temos a presença de deputados fundamentalistas que se elegem com essa agenda e uma bancada cristã muito forte que constrói sua vida política baseada na anulação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres”, disse a integrante da Cfemea.
Atuação da esquerda e dos partidos políticos
Ao analisar os projetos de lei que mencionam o tema a partir de 1949, é possível identificar que 44% das propostas apresentadas pela direita são contrárias ao aborto, enquanto elas representam 34% do total apresentado pelo centro e 32% do proposto pela esquerda. Já apenas 13% dos projetos de lei apresentados pela esquerda e 2% das propostas do centro e da direita possuem um viés positivo sobre a legalização do aborto. O restante não se aplica diretamente ao tema, ou trata de assuntos como o plenejamento familiar.
Para Feghali, a esquerda não está isenta de valores moralistas e religiosos que buscam romper com a laicidade do Estado e incidir sobre os direitos reprodutivos das mulheres. Por isso essa discussão não se estabelece como unanimidade e mais de 30% dos projetos de lei apresentados pela esquerda são contrários ao aborto.
“Grande parte da base da esquerda é muito religiosa e moralista. O PT chegou ao poder se fortalecendo a partir dessa base. O assunto é muito dissonante para os deputados. Eles são conservadores também e não vão pautar uma agenda que junto à sociedade é vista de um modo muito pejorativo, porque sabem que vão ser cobrados na base e isso pode ser motivo para perder a eleição”, completa Masra Abreu.
Ao longo de sete décadas, o PT foi o quinto partido a apresentar o maior número de projetos de lei contrários ao aborto: foram seis, mesma quantidade que o PSL. Não somente há mais de uma proposição que dispõe sobre o estatuto do “nascituro” (que define a vida desde a concepção e criminaliza ainda mais o aborto), como o PL 489/2007, de Odair Cunha (MG) e o PL 478/2007 de coautoria de Luiz Bassuma (BA), como uma das propostas trata da punição pela realização de aborto em casos de gravidez decorrente de estupro (PL 5364/2005), direito previsto em lei.
“Como reflexo da sociedade, os partidos políticos ainda enfrentam questões como patriarcado e machismo. Embora tenhamos aprovado uma resolução interna do partido que fala sobre a descriminalização do aborto, não podemos dizer que é uma unanimidade na legenda, porque não é”, comenta Anne Karolyne Moura, secretária Nacional de Mulheres do PT.
Nos projetos de lei apresentados pelo PT, esse posicionamento contrário ao aborto é identificado especialmente a partir de 2004. Nos anos anteriores, o partido se destacava pela proposição de leis que dispunham diretamente sobre a descriminalização – foram 15 projetos de lei nesse sentido.
Segundo Moura, mesmo com a falta de unidade sobre a descriminalização do aborto, deixar de debater alguns temas na esquerda (porque supostamente podem “dividir”), seria negar a luta de mulheres que há anos estão pautando o debate. “A esquerda não pode só discutir o que é cômodo ou agradável. Tem que pautar temas que achamos relevantes para a nossa concepção de sociedade. Nós temos que enfrentar essas contradições e aperfeiçoar a nossa narrativa e nosso método de dialogar sobre isso, tanto para dentro quanto para fora”, conclui.
Por Vitória Régia da Silva e Flávia Bozza Martins