Mulheres pretas e pardas formam o maior grupo da população brasileira, mas permanecem imperceptíveis para grande parte das empresas
(Folha de S. Paulo, 06/10/2019 – acesse no site de origem)
As mulheres negras, contingente que reúne pretas e pardas, movimentam cerca de R$ 704 bilhões por ano no Brasil, segundo levantamento feito pelo Instituto Locomotiva, especializado em pesquisa de mercado consumidor, a pedido da Folha.
O valor, estimado a partir do cruzamento de dados de renda e consumo do grupo, representa cerca de 16% do consumo nacional.
Mas o presidente do instituto, Renato Meirelles, afirma que elas têm um poder de decisão financeira maior que o percebido, pois muitas administram as compras do lar e influenciam nos gastos dos parentes. “As negras formam um mercado gigantesco, mas que não está no radar das empresas”, diz Meirelles, que também é publicitário.
Em parte, isso ocorre porque as negras são uma espécie de maioria invisível na economia brasileira.
Elas formam o maior grupo da população. Somam quase 60 milhões de pessoas —28% dos brasileiros, segundo a PNAD contínua do IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Samantha Almeida, chefe de conteúdo na agência Ogilvy Brasil
Ultrapassam os homens brancos em cerca de 17 milhões de pessoas, o equivalente às populações estimadas dos municípios de São Paulo, Brasília e Porto Alegre juntos. Também representam 24% da força de trabalho do país.
No entanto, o mundo empresarial ainda tem dificuldade de reconhecer o potencial delas. As negras são as que mais sofrem com o desemprego e as que recebem salários menores. Nos quadros executivos das 500 maiores empresas do Brasil, a presença delas é de 0,4%, segundo pesquisa do Instituto Ethos de 2015.
Para traçar a trajetória delas na geração da riqueza nacional, a Folha ouviu 26 mulheres pretas e pardas e apresenta os depoimentos numa série de quatro reportagens entre domingo (6) e quarta-feira (9). Na edição de hoje, o destaque é o papel delas como consumidoras e a inabilidade das empresas para lidar com esse mercado.
Apenas 17% dos comerciais de TV protagonizados por mulheres são estrelados por negras, segundo pesquisa da agência Heads. A desconexão é percebida: 83% das consumidoras negras afirmam que as mulheres das propagandas são muito diferentes delas, de acordo com o levantamento do Locomotiva.
O instituto entrevistou 1.001 mulheres negras em 46 cidades do país entre 5 e 15 de agosto. A margem de erro é de 2,6%, em um intervalo de confiança de 90%.
Mulheres negras formam o maior grupo da população brasileira*
Mercado consumidor
Mulheres negras movimentam mais de R$ 700 bi por ano, mas não se sentem representadas nas propagandas
O levantamento também identificou o que elas pretendem comprar no próximo ano: móveis (36%) eletrodomésticos (33%) e carro (27%) apareceram no topo da lista.
Segundo Meirelles, a pesquisa mostra ainda que a mulher negra quer se ver representada e pode se afastar de marcas que não considerem a diversidade.
Pelo levantamento, 82% dizem ter orgulho de ser quem são, e quase 90% gostam de produtos que melhorem a autoestima.
Ter orgulho de ser negro é um dos fatores que explicam o aumento da autodeclaração da cor da pele, verificado pelo IBGE. Entre 2012 e 2016, por exemplo, enquanto a população brasileira cresceu 3,4%,
o número de pardos autodeclarados aumentou 6,6% e o de pretos, 14,9%.
“Isso foi uma revolução: se reconhecer negro é o primeiro passo para consumir produtos específicos e cobrar diversidade das marcas”, afirma Adriana Barbosa, 42, fundadora do Festival Feira Preta, evento criado em 2002 para atender especificamente empreendedores negros.
Um setor que começou a perceber a mudança de comportamento foi o de cosméticos, que nos últimos anos passou a trabalhar com linhas voltadas para cabelo crespo e maquiagem para peles negras.
No entanto, a oferta ainda é pequena em relação ao tamanho da demanda, segundo a publicitária Raphaella Martins Antonio, que é negra e foi uma das líderes na implementação do programa de diversidade racial da agência J. Walter Thompson Brasil.
“São poucas as marcas que fazem bases com tom de pele escuro aqui no Brasil, e são caríssimas. Não reflete a nossa realidade, porque uma mulher negra dificilmente consegue comprar uma base de R$ 300”, diz Raphaella.
“A maioria das marcas está deixando de falar profunda e genuinamente com esse grupo. Ainda que não seja por consciência, mas por estratégia, a empresa precisa pensar nisso.”
Segundo ela, há exemplos peculiares, mas ilustrativos, dessa incapacidade de perceber a diversidade na hora de conceber produtos: “há o caso de saboneteiras automáticas em que o sensor não reconhece a pele escura, porque a tecnologia é feita para brancos. Ou de airbags que são testados com bonecos homens, sem considerar a altura média da mulher”, diz ela.
Mas pensar em produtos específicos também não é uma tarefa simples. Existe um debate em relação a esse tema.
Há quem defenda que é preciso ter cuidado para não reforçar estereótipos. Nesta vertente está a publicitária Isabel Aquino, que coordena pesquisa sobre a presença de negros na propaganda, da agência Heads.
“Como seria um cartão de crédito para mulher negra? O que é um carro para uma mulher negra? O risco de ser estigmatizado é muito grande. Acho que isso só faz sentido quando tem uma funcionalidade, como uma base para pele escura”.
Para ela, um banco não necessariamente deve fazer um serviço voltado para negras, mas precisa ter uma comunicação em que elas estejam representadas positivamente.
Nina Silva, criadora do movimento Black Money, defende outro ponto de vista.
“Tem que ter serviços financeiros específicos para a população negra, sim, porque a grande maioria dos desbancarizados no país é negro. Não é questão de reforçar estereótipos”, afirma.
Nina dá exemplos: diz que gostaria de ter um carro com o teto um pouco mais alto, para que tivesse mais conforto.
“Meu cabelo black sempre bate no teto. Imagina se tivesse uma publicidade com uma mulher negra entrando facilmente no carro? Isso ia falar diretamente comigo”, afirma.
Nina criou o movimento para incentivar que o dinheiro em poder dos negros circule o maior tempo possível dentro da própria comunidade.
“Nós não inventamos a roda, outros grupos que também foram marginalizados, como judeus, trabalharam o desenvolvimento interno da comunidade para se reerguer. O movimento busca essa intencionalidade de consumo e no mercado de trabalho”, afirma.
O Black Money faz capacitações voltadas para o empreendedorismo e a educação financeira, além de fomentar o networking e mentorias. “Queremos promover a circulação também do nosso capital social, não só do dinheiro”.
O movimento ainda planeja oferecer serviços financeiros, como linhas de crédito e investimentos.
“Estamos desenvolvendo uma maquininha de cartão, com taxas mais justas para empreendedores.
Vamos chamar de pretinha, e já temos um protótipo”, diz Nina, que é gerente de projetos em uma empresa global de tecnologia.
Segundo ela, consumidores brancos podem ser aliados e “praticar black money”.
“Não basta não ser racista, é preciso ter atitudes que promovam a quebra das desigualdades”.
Por Marina Estarque e Priscila Camazano