“TODO ABORTO É UM ACIDENTE de trabalho.” Encarei as palavras da Silvia Federici com espanto. A frase curta, direta e incômoda da historiadora italiana era fruto de um quebra-cabeça incomum. As peças? Caça às bruxas, controle sobre o corpo da mulher, desvalorização do trabalho doméstico e nascimento do capitalismo. À primeira vista, elas não combinavam. Mas, organizadas pela originalidade arrebatadora e pela linguagem simples de Federici, formavam um encaixe provocador, que tornou a intelectual uma das vozes mais relevantes do feminismo atual.
(The Intercept Brasil, 07/10/2019 – acesse no site de origem)
Não sabe de quem eu estou falando? Dá uma olhada nesse vídeo curtinho que te conto melhor quem é a autora de ‘Calibã e a bruxa’. Ela encanta quem ainda flerta com o movimento, decidindo se deve ou não se aproximar, e surpreende quem se achegou há tempo suficiente para se ver presa em discussões repetitivas sobre aborto, maternidade e violência obstétrica. Com isso em mente, convidei a historiadora para uma entrevista em São Paulo, onde ela divulgava o lançamento dos livros ‘O ponto zero da revolução’ (em que está presente a citação que abre esse texto) e “Mulheres e caça às bruxas”.
Federici e eu nos encontramos em uma livraria na manhã de 28 de setembro – coincidentemente, Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta Pela Descriminalização do Aborto. Era o final de uma quinzena preocupante. No dia 19, a ministra da Mulher, Damares Alves, afirmou que havia denunciado a Revista AzMina por publicar uma reportagem com informações públicas sobre aborto. Na mesma data, revelamos a decisão do Conselho Federal de Medicina que permite que médicos façam procedimentos forçados em mulheres grávidas. Seis dias depois, Bolsonaro usou seu palanque na ONU para se referir indiretamente ao debate de gênero como uma tentativa de “destruir a inocência” das crianças, “pervertendo” sua identidade. E, uma semana depois da tentativa de censura à AzMina, a Gênero e Número divulgou que os projetos de lei contrários ao aborto bateram recorde este ano.
A capacidade de Silvia Federici, hoje com 77 anos, de trazer frescor às discussões sobre nossos direitos reprodutivos, tão ameaçados no Brasil – e, como me revelou a italiana, também nos Estados Unidos – guiou nossa conversa. A relação entre o início da guerra ao aborto e à homossexualidade e a origem do capitalismo; a substituição das parteiras, queimadas como bruxas, pelos médicos; a naturalização do trabalho doméstico como amor; e a resistência das mulheres de movimentos sem terra e sem teto estiveram entre os temas de que tratamos.
Foi em um prédio ocupado por essas militantes, a Ocupação 9 de julho, que Federici atraiu centenas de mulheres para um debate sobre lutas sociais naquela tarde. Dispersos entre as espectadoras encolhidas pelo frio, panos de prato com uma frase icônica da italiana alertavam: “Isso que chamam de amor é trabalho não pago”.
Confira os principais trechos da entrevista:
Intercept – O aborto nem sempre foi tratado como algo imoral ou criminoso. Quando e por que isso mudou?
Silvia Federici – Eu descobri durante uma pesquisa sobre o posicionamento da igreja na Idade Média em relação ao aborto que, de fato, nos livros chamados “Penitenciais” – livros de instruções para os padres, os confessores – que o posicionamento da igreja sobre o aborto não era completamente negativo. Na verdade, eles ditavam que uma mulher pobre poderia fazer algumas orações caso tivesse abortado. Mas você percebe uma mudança tremenda já entre os séculos 15 e 16. Eu explico isso, em parte, como uma reação à Peste Negra. Foi uma epidemia que exterminou uma parte enorme da população europeia, então a preocupação com a população e a demografia se intensifica muito.
Ao mesmo tempo, você realmente começa a ver uma guerra contra o aborto no século 16, quando não só a igreja, mas praticamente todos os governos e estados, em conjunto com o início da economia capitalista, introduzem leis muito punitivas relacionadas ao aborto, ao infanticídio. Eles estabeleceram a pena de morte. Isso aconteceu em paralelo à caça às bruxas. A questão do controle sobre os corpos das mulheres e a demonização de qualquer forma de contracepção realmente acontece em conjunto com a criação dessas leis.
A bruxa é a mulher que odeia a vida nova. Ela [no imaginário da época] mata crianças, ela impossibilita a concepção, ela congela os homens, praticamente os castra, impossibilita a concepção.
Meu argumento em “Calibã e a bruxa” é que, com o capitalismo, se desenvolve uma nova consciência demográfica. O capitalismo é um sistema social que, ao contrário do anterior [o sistema feudal], vê a acumulação de riqueza como o produto do trabalho humano, não a posse de terra. A terra é importante, mas bem mais importante é a quantidade de pessoas, [porque] é o trabalho delas que cria a riqueza. Então, isso muda a atitude diante da procriação, que passa a ter um valor econômico. Então, com a [importância da] procriação, vem o controle sobre o corpo das mulheres e sua sexualidade.
Nós costumamos pensar na Idade Média como uma época terrível para as mulheres. Mas seu livros me passam a impressão de que elas tinham uma autonomia significativa em relação aos seus direitos reprodutivos. Você afirma que, na Idade Moderna, o útero foi transformado em território político e a procriação passou a servir à acumulação capitalista, que retirou esse poder delas.
Em primeiro lugar, a questão das mulheres na Idade Média… Na Idade Média, as pessoas eram exploradas, subjugadas e, em muitos casos, por muito tempo elas não podiam viver nas terras dos senhores. Ao mesmo tempo, o trabalho era muito coletivo. Você não tinha na Idade Média um sistema de salários. As pessoas eram remuneradas recebendo terras, que seriam cultivadas coletivamente. Então, toda a cultura, toda a reprodução e o dia-a-dia na Idade Média uniam as pessoas. As mulheres estavam juntas o tempo inteiro, costurando, trabalhando nos campos e na reprodução. Todas as imagens que temos de mulheres no século 15, mesmo no 16, são delas cuidando da que está parindo.
As primeiras evidências de contracepção aparecem três mil anos antes de Cristo. Então, as mulheres escravizadas, que vieram ao Brasil e outras partes do continente americano, também trouxeram com elas o conhecimento das ervas e muitas vezes as utilizaram.
Silvia Federici chega à Ocupação 9 de Julho, no centro de São Paulo, e cumprimenta a escritora Bianca Santana, autora do prefácio brasileiro de ‘Mulheres e caça às bruxas’. Foto: Gabi Di Bella/The Intercept Brasil
As mulheres eram as curandeiras, as parteiras. Não foi até o século 16 que os homens começaram a entrar no local em que a mulher dava à luz. E elas nunca pariam sozinhas. Elas sempre davam à luz cercadas de outras mulheres. Isso é algo muito importante de manter em mente. Agora, por exemplo, as mulheres negras no Estados Unidos estão tentando recuperar um pouco desse controle – com a personagem da doula, por exemplo. As mulheres tentam não ir sozinhas ao hospital, onde são humilhadas, forçadas a fazer cesáreas. Elas têm alguém para advogar por elas, que está lá por você em um momento difícil, para permitir que você se concentrar no que você está fazendo.
O parto era controlado pelas mulheres, mas em um dado momento o poder sobre nossa saúde reprodutiva, nossas gestações e nossos partos foram confiscados pelos médicos – que eram homens na época – e as parteiras passaram a ser queimadas por bruxaria. Por que nunca conseguimos reaver esse controle e como podemos lutar por ele?
Tem um livro muito interessante da Barbara Ehrenreich e da Deirdre English, publicado em 1972, chamado “Witches, midwives and nurses” [“Bruxas, parteiras e enfermeiras”, em tradução livre]. Esse foi um dos livros que me inspiraram a escrever “Calibã e a bruxa”. Ele documenta as mudanças trazidas pela ascensão da profissão médica na sistematização do trabalho de parto e como, cada vez mais, as parteiras foram perdendo lugar. Elas eram suspeitas de ajudar as mulheres a cometer infanticídios ou a usarem contraceptivos.
Você pode datar isso e ver que foi uma jogada política. Não foi algo ditado pelo desejo de proteger as mulheres. As parteiras tinham infinitamente mais conhecimento do que os médicos. E a substituição delas foi um longo processo. Descobri que, mesmo no século 19, no Canadá, por exemplo, as mulheres ainda lutavam para resistir ao banimento das parteiras.
Acho que o que está acontecendo agora no Brasil é realmente uma continuação do que está acontecendo nos Estados Unidos. Nós temos o exato mesmo problema. Exceto que, no Estados Unidos, nós temos uma lei constitucional que afirma que o aborto é legal. Roe versus Wade. Mas, desde que foi aprovada, tem havido um esforço enorme de políticos de direita e das igrejas – as igrejas antigas – para mudar isso. E diversos estados já aprovaram leis que estão restringindo o direito ao aborto.
Todos os dias as pessoas pró-vida estão tornando a vida das mulheres que vão a essas clínicas intolerável. Elas ficam do lado de fora gritando: “Assassina de bebês, assassina de bebês!”. Isso é uma caça às bruxas. E é totalmente hipócrita. Temos que denunciar isso. Elas se apresentam como pró-vida, mas quando a criança nasce, elas não ajudam a criança e a mulher de nenhuma forma. Então é um ataque às mulheres. Não é uma defesa da vida. Temos que dizer isso. As crianças podem morrer nas ruas, que elas não dão um dólar, um real para seu bem-estar.
Silvia Federici participa da mesa ‘Mulheres e resistência: a linha de frente das lutas sociais’, na Ocupação 9 de Julho. Foto: Gabi Di Bella/The Intercept Brasil
E agora, nos Estados Unidos, estão dando direitos legais aos fetos. As mulheres podem ser presas por qualquer coisa que, na mente dos políticos e do governo, possa afetar o feto. Você sofreu um acidente de carro e está grávida? Você pode ser acusada de homicídio culposo. Você está tomando um remédio para a sua saúde e ele pode ter um efeito colateral para um feto? Você pode ser presa. E está se tornando mais difícil provar que você teve um aborto natural.
De novo: é muito importante denunciarmos a hipocrisia, essa justificativa de que essas pessoas são defensoras da vida. Não, não são defensoras da vida, são quem está criando leis para dificultar a reprodução dos pobres. Querem que as mulheres sejam produtoras de crianças, mas também querem decidir quem deve ter o direito de se reproduzir e quem não tem. Eles querem que mulheres brancas, de classe média, ricas tenham mais filhos, mas não querem que as pobres tenham mais filhos, porque têm medo de que produzam pessoas que vão criar problemas.
Muitas das mulheres assassinadas na caça às bruxas eram as que exerciam sua liberdade sexual fora do casamento e do contexto da procriação. Você escreveu que esse foi o primeiro passo para a ideia do “sexo limpo em lençóis limpos”, que foi vital para o sistema capitalista.
O capitalismo teve que controlar a sexualidade feminina, para garantir que essa sexualidade… que nós nunca exerçamos essa sexualidade para o nosso prazer, nossa satisfação ou nosso bem-estar. A sexualidade também se torna parte do processo de trabalho. Transar? Sim, mas para produzir crianças. Transar? Sim, mas para dar prazer aos homens e satisfazê-los, porque isso faz parte da pacificação dos homens. Eles são explorados, mas têm uma serviçal. Eles podem voltar para a casa, que a comida vai estar pronta, e a mulher está lá para fazer sexo. Então, para as mulheres, sexo tem sido uma parte do trabalho doméstico.
Os três livros de Silvia Federici traduzidos no Brasil. O lançamento mais recente, ‘Mulheres e caça às bruxas’, foi publicado pela Editora Boitempo. Já ‘O ponto zero da revolução’ e ‘Calibã e a bruxa’ foram publicados pela Editora Elefante e estão disponíveis gratuitamente, em PDF, no site do Coletivo Sycorax. Imagens 1 e 3: Divulgação/Editora Elefante; Imagem 2: Divulgação/Editora Boitempo
Nesse contexto, queria lembrar uma frase bem forte que está em um de seus livros: ‘Todo aborto é um acidente de trabalho’. Pode comentar?
Para nós, sexo é o trabalho de satisfazer os homens. É parte da reprodução dos trabalhadores. Nós reproduzimos os trabalhadores não só os alimentando, lavando suas roupas, mas também oferecendo sexo e apoio emocional. O trabalho doméstico, reprodutivo, inclui muitas atividades, mas foi tornado invisível, foi desvalorizado. Na verdade, são tantas tarefas. É um trabalho muito complexo, e o sexo é parte central disso.
Então, as mulheres notoriamente fazem sexo estando cansadas ou não à noite. Elas têm que satisfazer o homem, fingir que aquilo dá prazer, mesmo quando é muito rápido, botou e tirou. Então, não usar camisinha é parte desse dever. As mulheres pegam doenças, como a Aids, por exemplo, porque muitos homens não querem usar camisinha, porque interfere no prazer deles. Então, o fato de isso poder te matar não importa, porque interfere com o prazer deles.
Acho que isso faz parte do esforço de recuperar algum controle sobre nossa sexualidade. Dizer: “Não, não vou arriscar morrer, não vou arriscar engravidar e fazer o trabalho de criar um filho por 20 anos, nem empobrecer porque não tenho dinheiro para cuidar dessa criança, só para poder transar, quando os homens não fazem nada para prevenir esses riscos”. Esse tipo de desigualdade é absolutamente inaceitável. E só uma hierarquia masculina pode impor isso. Eles querem decidir, quando não são eles que têm que passar por nove meses de gravidez. Então que direito eles têm?
Pano de prato exposto durante atividade na Ocupação 9 de Julho. Já nos anos 1970, Silvia Federici denunciava a exploração a que as mulheres eram submetidas dentro de casa, realizando trabalhos exaustivos, não remunerados e invisibilizados pela esquerda e pela direita como “atos de amor”. Foto: Gabi Di Bella/The Intercept Brasil
Com essa correlação rigorosa entre sexo e procriação, muitas formas diferentes de sexualidade que não servem à reprodução passaram a ser vistas como obscenas. Me chocou ler que os corpos dos homossexuais eram usados para acender as fogueiras que queimavam as bruxas.
Há uma documentação exaustiva provando que na Idade Média, em algumas cidades italianas, como Florença, a homossexualidade era uma prática generalizada em todos os níveis. E é só mais tarde que ela é criminalizada. Criam-se leis para bani-la e toda uma ideologia. A “sodomia” se torna um crime punido com pena de morte. E, com a caça às bruxas, sexo com uma pessoa do mesmo sexo é parte da demonologia, é parte das acusações de bruxaria.
Em ‘Calibã e a bruxa’, você menciona que crenças diabólicas podem aparecer quando um sistema de produção é substituído por outro. Nosso presidente se elegeu com o slogan ‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos’ e se referiu várias vezes ao que chama de ‘ideologia de gênero’ como algo demoníaco. Seu livro é sobre caça às bruxas, então me vêm à mente a imagem de uma boneca da Judith Butler sendo queimada há dois anos, no Brasil.
Sim, repulsivo, muito perverso. Isso é perversão.
A historiadora italiana na Ocupação 9 de Julho, do Movimento Sem Teto do Centro, o MSTC, em São Paulo.Fotos: Gabi Di Bella/The Intercept Brasil
Como toda essa demonização religiosa de certas pessoas e certas ideias se relaciona com as mudanças atuais no sistema capitalista?
Ah, se relaciona muito bem. Primeiramente, quero dizer algo sobre as mudanças no modo de produção. Elas não se limitam às mudanças econômicas entendidas de forma restrita. Elas mudam todos os aspectos da vida. A reprodução, as relações sociais etc.
Hoje, a nova caça às bruxas, o tipo de propaganda feita pelos políticos de direita e o novo uso da religião como uma forma de disciplinar as mulheres é mesmo uma reação, em primeiro lugar, à luta das mulheres contra sua subordinação social, contra todo seu trabalho não pago.
As pessoas me perguntam: “e a igreja? E a religião?”, e eu venho repetindo: “a igreja e a religião são parte da estrutura de poder”. Sempre foram. E é essa parte da estrutura de poder que tem sido particularmente direcionada à organização da vida reprodutiva. Toda a demonização dos corpos das mulheres. Você é Eva. As mulheres trazem o pecado original. As mulheres são a causa da queda da graça da humanidade. Isso é demais. Então, a igreja, da Idade Média ao presente, e o apelo a Deus e à religião têm sido muito usados.
Você escreveu em ‘O ponto zero da revolução’ que é apenas quando nós, enquanto sociedade, perdemos tudo, que conseguiremos encontrar e lutar por novas formas de vida e reprodução. No livro você aplaude as mulheres do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST, por lutar pela preservação das terras que elas ocupam e por construírem uma forma alternativa de sociedade baseada na comunidade e na cooperação.
Nós descobrimos que diante dos ataques mais severos à habilidade das mulheres e das comunidades de acessar a terra e se reproduzir, a única resposta tem sido a criação de comuns reprodutivos, de formas cooperativas de reprodução. Quero mencionar especificamente algo que ouvi as mulheres do MST dizerem no início dos anos 2000, na Conferência das Mulheres no México. Elas disseram que, quando estavam ocupando as terras, era muito importante estarem juntas. Elas sempre faziam o trabalho de reprodução juntas.
Quando elas estavam em posse das terras, frequentemente os homens diziam: “Eu quero botar minha cerca aqui ou acolá”, e as mulheres diziam: “Não, não. Quando nós precisávamos, era poderoso fazer tudo juntas. Era necessário na luta. Temos que continuar fazendo isso, continuar fazendo o trabalho doméstico, cuidar das crianças, cozinhas juntas, como fizemos durante a luta”. O que está acontecendo como reação à desapropriação não é só resistência. É também uma transformação da vida cotidiana.
Por Bruna de Lara