Em violência de gênero, punitivismo criminal e intervenção policial não estancam barbárie
(O Globo, 19/10/2019 – acesse no site de origem)
Depois de muitos episódios de agressão, o marido de Marli a queimou com o ferro de passar roupa. A violência, presenciada pelo filho, foi o que a motivou a procurar a Justiça. Envergonhada, exibindo a ferida ainda aberta, foi ouvida e saiu do Fórum com a liminar, impedindo-o de entrar na casa onde moravam. Ainda não havia Lei Maria da Penha.
Meses depois, acompanhada da advogada contrariada com a decisão da cliente, me confidenciou que pensara melhor. Arrependido, ele prometeu que jamais a machucaria novamente. Ela nunca mais queria ser humilhada, mas ainda o amava e preferia acreditar nele.
A advogada rejeitava tal decisão, e foi quase ríspida ao insistir que ela voltasse atrás, deixando-a ainda mais angustiada. Precisei intervir para explicar que não estávamos julgando as decisões de Marli. Esclareci que, caso voltasse a acontecer, ela poderia retornar à Justiça que seria novamente atendida. Insisti para que ela não se submetesse a nenhuma violência, e sugeri que procurasse uma terapia. Qualquer escolha seria mais verdadeira, com o fortalecimento da autoestima dela. Pensei em fazer um discurso sobre igualdade e justiça. Não era o momento adequado. Torci para que ela sobrevivesse e ali entendi que o combate à violência de gênero precisa de ações políticas mais abrangentes e efetivas. Marli, naquela hora, só precisava de acolhimento.
Anos se passaram desse episódio, a Lei Maria da Penha foi promulgada, estabelecendo medidas de proteção e transformando em ação penal incondicionada os crimes contra as mulheres. Não mais depende da vontade da vítima o prosseguimento da ação penal. A expectativa era a redução da violência e do machismo que agride, fere e mata. Os números crescentes e o recrudescimento da perversão, no entanto, desafiam a racionalidade, e apontam para a perpetuação da inaceitável desigualdade. No primeiro trimestre deste ano, mais de 200 mulheres foram mortas. De janeiro a agosto, chegaram ao canal de denúncias 47.201 ocorrências de violência doméstica, como noticiou O GLOBO na última quinta-feira.
A empatia com essas mulheres causa reações passionais de revolta. Mesmo avessa ao endurecimento das penas, e repelindo as prisões perpétuas e linchamentos, não consegui evitar um sentimento de indignação quando, na semana passada, foi anunciado o veto presidencial ao Projeto de Lei 2538/19. Reagi açodadamente ao aparente absurdo que a decisão representava. O texto, da autoria da deputada Renata Abreu, propunha tornar compulsória a notificação às autoridades policiais de casos suspeitos de violência contra a mulher que chegassem aos serviços de saúde, ainda que sem o consentimento da vítima. Meu receio era o de que, sem as notificações, se retornasse à velha e odiosa prática de esconder nos lares a violência, e se ressuscitasse a ideia de que, em briga de marido e mulher, não se mete a colher. A realidade, no entanto, ensina que, também no caso de violência de gênero, o punitivismo criminal e a intervenção policial não estancam a barbárie. Felizmente, alertada pela Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, pude refletir melhor. De fato, a notificação policial, à revelia da mulher, ao invés de protegê-la, acaba por deixá-la ainda mais vulnerável. Em nota, a Rede indica que, ao receber uma mulher fragilizada, em situação de violência, deve ser oferecida uma escuta especializada, com esclarecimentos sobre a importância da denúncia. Sem o consentimento da mulher, a notificação representa mais uma violência para a sua dignidade. Impossível imaginar que, sem autonomia, em um assunto que trata da sua intimidade, o ciclo da violência será interrompido. Sem falar no receio na procura por atendimento, o que pode potencializar os riscos para a vida e para a saúde.
Por Andréa Pachá