Decisão de Bolsonaro contra projeto é apoiada por especialistas, que veem risco à mulher com alerta policial
(Folha de S. Paulo, 19/10/2019 – acesse no site de origem)
Um projeto que obriga hospitais a avisar a polícia em até 24 horas após atendimentos de casos com indícios ou confirmação de violência contra a mulher colocou membros do Executivo e do Congresso em lados opostos.
Aprovada em setembro, a proposta foi vetada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) na semana passada, sob a justificativa de “contrariedade ao interesse público”. O veto teve apoio de grupos de médicos e entidades e foi elogiado por especialistas, mas gerou críticas de parlamentares.
Projeto Mãos Empenhadas
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse à Folha que tentará derrubar o veto. A análise é feita em sessão do Congresso (realizada conjuntamente entre senadores e deputados) ainda sem data prevista.
Em geral, depois do veto, há prazo de 30 dias para que as duas casas legislativas analisem a decisão presidencial. Procurado, o presidente do Congresso, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), não comentou seu posicionamento.
A maioria dos especialistas critica o projeto de lei, que coloca no centro do debate os hospitais que atendem esses casos e o impacto na proteção e na autonomia das mulheres. Mas não há parecer unânime.
Hoje a notificação de atendimentos a casos de violência é obrigatória apenas para autoridades de saúde, não à polícia, com vistas a ajudar na elaboração de políticas públicas.
A medida segue lei de 2003 pela qual a identificação da vítima fora do sistema de saúde só deve ocorrer com autorização da mulher ou responsável. Já o projeto, embora mantenha esse trecho, determina que haja aviso à polícia em até 24 horas e notificação para indícios de violência, mesmo sem confirmação.
Em sua justificativa, o Palácio do Planalto alegou seguir orientação dos ministérios da Saúde e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Para as pastas, a obrigação afeta o sigilo médico e poderá fazer com que mulheres deixem de procurar a rede de saúde. Também poderia levar a mulher a reviver a situação ao ter o caso exposto, ampliando o trauma, apontam.
Posição semelhante foi compartilhada pela Rede Feminista de Obstetras. Em nota assinada em parceria com outras 14 associações que atuam em defesa das mulheres, o grupo diz que a denúncia à revelia da mulher “viola sua autonomia e direito à privacidade” e a “expõe a um maior risco de retaliação do agressor”.
Para a Associação Nacional de Defensores Públicos, “nessas condições, à mulher seria negada a condição de sujeito de direitos, apta a decidir sobre a melhor estratégia de enfrentamento à violência diante de seu contexto particular.”
A autora do projeto, deputada Renata Abreu (Podemos-SP), contesta. Para ela, a proposta visa ampliar a proteção às mulheres ao determinar que a polícia aja. Ela nega que o texto possa ferir o sigilo e diz que caberá à polícia evitar a divulgação.
“Nosso projeto relaciona os indícios de crime e fixa prazo para que a notificação seja feita à polícia, que poderá trabalhar melhor e mais rapidamente no mapeamento da violência, na investigação e em ações preventivas.”
Botão do pânico em aplicativo de celular já levou 5 à delegacia
De 2011 a 2018, a rede de saúde notificou 1,2 milhão de casos de violência contra mulheres. Desses, metade teve como alvo mulheres de 15 a 39 anos, e a maioria foi vítima dentro de casa.
Autora de livros sobre o tema, a advogada criminal Luiza Nagib Eluf compara a polêmica ao histórico de leis sobre a abertura de processos criminais em caso de estupro.
“De 1940 a 2009, o estupro era um crime de natureza privada. O Estado não podia processar a não ser que a mulher autorizasse. Foi uma luta para que virasse crime de ação penal pública. A vítima tinha que pagar advogado para processar o estuprador”, afirma.
“Agora, vemos o mesmo papo furado de que não pode avisar a polícia para proteger a mulher. O Estado precisa saber que tem um marido espancando a mulher. Se ela vai para o hospital, é porque está arrebentada”, diz.
A promotora Silvia Chakian, que atua no Ministério Público de São Paulo em casos de violência contra mulheres, vê risco de impacto oposto. “O que o Estado faz para garantir a integridade física e psicológica dessas mulheres depois que se leva à polícia? Não dá para achar que, ao fazer isso, a situação está resolvida”, diz.
“Há casos muito complexos, em que isso pode trazer maior exposição e aumento do risco para essas mulheres.”
Para ela, antes de fazer ajustes na lei, é preciso maior esforço do poder público em assegurar medidas de proteção e apoio às mulheres. “Não adianta dizer que é importante comunicar a polícia, se a mulher não tem emprego, nem creche para deixar o filho.”
A notificação de indícios de violência é outro ponto que preocupa especialistas. “Com isso, pode ir parar na polícia um caso que talvez nem seja de violência doméstica, expondo a vítima”, afirma Silvia.
Para Wânia Pasinato, consultora da ONU Mulheres, é preciso analisar com cautela uma mudança na lei atual. “A reação ao veto foi problemática porque parece que o que provocou foi só uma reação impensada”, diz. “Veio de todos os lados, de pessoas que deveriam entender melhor o assunto mas apenas reagiram contra o veto por ter sido do presidente.”
Wânia concorda com os argumentos de que a medida fere a liberdade de decisão da mulher e o sigilo médico. Segundo ela, o ideal seria o governo estimular que, durante o atendimento de saúde, a vítima de violência recebesse orientações do que pode ser feito, medida já prevista na lei.
A líder da bancada feminina na Câmara, deputada Dorinha Rezende (DEM-TO), diz que está prevista uma reunião entre parlamentares do grupo nesta semana para verificar a possibilidade de recompor partes do texto vetado ou construir um novo projeto.
“Essa história de autonomia permitiu à sociedade por muito tempo ignorar a violência contra a mulher no sentido de, em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, diz. “Precisamos respeitar a autonomia, mas sabemos como são construídas as relações de poder numa situação extremamente desigual.”
Por Natália Cancian e Talita Fernandes