“A Liberdade de uma pessoa não pode ser baseada na subordinação de outra”, afirmou Patricia Hill Collins ao público que a assistiu no último domingo, no Rio de Janeiro. A autora do clássico ‘Pensamento feminista negro’ protagonizou uma mesa da Feira Literária das Periferias, a Flup e, cuidadosa, perguntava de quando em quando se todos acompanhavam seu raciocínio firme. Encantada, Collins autografou livros, posou para fotos e assistiu empolgada a uma batalha de slam e à ciranda de Lia de Itamaracá. Por fim, encerrou a noite do jeito que escreve seus livros: absorvendo as experiências dos locais e das pessoas que encontra.
(The Intercept Brasil, 22/10/2019 – acesse no site de origem)
No livro lançado em 1990, Collins desperta o olhar para a natureza interligada das opressões que desumanizam as mulheres negras e as coloca como protagonistas. Ela dá voz a mulheres comuns que, no geral, não teriam sua intelectualidade reconhecida. Isso tornou a obra um dos títulos mais importantes da teoria do feminismo negro, trabalhando os conceitos de empoderamento e interseccionalidade – sequestrados pela pauta neoliberal. A chegada da obra ao Brasil, em julho, mostra a relevância desse trabalho. Ao mesmo tempo, as três décadas de atraso na publicação ilustram a dificuldade da inserção de autores negros num mundo que os silencia.
A autora autografando exemplares de seu livro ‘Pensamento feminista negro’, lançado em julho deste ano pela Editora Boitempo, ao lado da artista Lia de Itamaracá. Foto: Walter Lima/The Intercept Brasil.
Collins assistindo ao final da batalha de slam na Feira Literária das Periferias, no Rio de Janeiro. Foto: Walter Lima/The Intercept Brasil.
‘Pensamento feminista negro’ é, como Collins, um livro pé no chão. Com o mesmo entusiasmo que mostrou ao acompanhar as atividades da Flup, a socióloga nos contou a história por trás do clássico. “Eu não estava olhando para os poderes do além ou para a ideologia”, nos explicou a escritora na última sexta-feira, dois dias depois de quase mil pessoas assistirem à sua palestra no Seminário Democracia em Colapso?, em São Paulo. “O livro era sobre o que as pessoas tinham me dito, o que tinham trazido, o que tinham feito.”
Sempre espontânea, ela conversou sobre as novas formas de cativeiro da população negra, os desafios enfrentados pela educação pública e o medo da palavra feminismo – e, em especial, do feminismo negro. De tempos em tempos, a entrevista era interrompida pela risada contagiante de Collins, que falou com uma dose extra de animação ao relembrar o processo de criação de seu livro. O entusiasmo daquela tarde seria marcado numa parede do Sesc algumas horas depois: “O futuro é nosso!”, escreveu a pensadora. “Permaneçam fortes!”
Confira os principais trechos da conversa:
Intercept – Você mencionou durante sua palestra que o encarceramento em massa é uma nova forma de manter pessoas negras em cativeiro. Ao mesmo tempo, argumentou que a violência doméstica também é uma forma de cativeiro – e, aqui, as mulheres negras são as maiores vítimas. O estado costuma apresentar a elas, como única forma de saída da violência, a denúncia criminal. Como lutar simultaneamente contra essas duas formas de cativeiro da população negra?
Patricia Hill Collins – Precisamos de uma análise que conecte as duas coisas, para não pensarmos nisso como dois temas separados. A população prisional é uma boa forma de tocar no ponto do cativeiro, mas eu também me referia à formação de guetos, à noção de ser preso contra sua vontade em categorias em que você não quer ser enquadrado. Você passa por violência na prisão, porque os homens te atacam, mesmo que seja uma prisão totalmente masculina.
Então, [é preciso] repensar a masculinidade nessa situação da violência que é cometida contra os homens, da violência que homens cometem contra outros homens e da que eles cometem contra as mulheres. Cruzar tudo isso. Não é uma questão de eliminar uma coisa, como se uma fosse mais importante do que a outra. É ver as conexões e procurar os espaços em que isso pode ser revertido.
Homens e mulheres ainda têm que desenvolver empatia suficiente pelas experiências uns dos outros.
A hierarquia de gênero com frequência diz às mulheres: “você é menor, você não é importante e é por isso que ele te agride. Você deveria ficar feliz de estar com ele”. Então, você começa com esse problema social da violência e como ela afeta de formas diferentes homens e mulheres e começa a pensar nas maneiras em que as aspirações deles e delas são mantidas em cativeiro. As mulheres estão dispostas a se acomodar, porque acham que não têm outras opções. Vou usar o cativeiro agora como uma metáfora – aquilo em que você acredita está te restringindo. Mas, se você está tentando sobreviver com seus filhos, estamos falando de cativeiros de verdade.
Patricia Hill Collins fala durante mesa realizada em 16 de outubro como parte da programação do seminário Democracia em Colapso?, organizado pela Editora Boitempo no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Foto: Divulgação/Editora Boitempo.
Homens e mulheres ainda têm que desenvolver empatia suficiente pelas experiências uns dos outros. Uma análise feminista negra baseada na interseccionalidade pode apresentar essas conexões. Há estudos, como os da Beth Richie, que fazem isso. Esses campos de análise são frequentemente vistos como coisas separadas. Uni-los numa mesma análise seria, para mim, a forma de lidar com isso.
Você estudou em escolas públicas, como boa parte dos estudantes negros brasileiros. A educação pública tem sido sucateada e está sob ataque neste governo, que acusa os professores de doutrinarem estudantes. Os ataques à educação pública são parte da estrutura de uma sociedade racista?
Ah, sim. O que precisamos fazer é elaborar isso e dizer: “que tipo de mudanças professores e estudantes precisam fazer para encarar isso?”. A primeira coisa é criar um movimento de resistência a essas políticas para tentar revertê-las. É claro que o Bolsonaro e muitos outros [atores políticos] não querem que os jovens – particularmente os negros – sejam pensadores críticos. Os professores talvez tenham que fingir ensinar só outras coisas [as disciplinas formais], mas de um jeito que faça os jovens enxergarem o que aprendem de forma crítica.
Sentimos que temos que dizer: ‘Você tem que ser crítico!’. Mas quando um professor age assim, ganha um alvo nas costas.
Eu tive professores que eram muito bons nesse tipo de sinalização de que você devia ter um olhar crítico sobre o que eles acabaram de ensinar. A gente pensava: “Espera, acho que não é para nós acreditarmos nisso”. Sentimos que temos que ser muito literais e dizer: “Você tem que ser crítico!”. Mas quando você age assim como professor, ganha um grande alvo nas costas e te perseguem. Há várias formas de se chegar ao mesmo resultado.
Os jovens veem a mensagem que está sendo passada [pelo governo] e sabem que não é o que querem. É preciso pensar sobre quais são as possibilidades a que você não recorre por presumir que vai ter acesso a uma escola. Que coisas os professores e os jovens realmente valorizam? E como você pensa em formas de dar continuidade a elas, especialmente se alguém está tentando te dizer que você não pode tê-las? A educação é vital e é por isso que governos que temem mudanças, com frequência, começam atacando a educação.
Existe no Brasil uma crítica ao feminismo negro dentro da comunidade negra que diz que não se pode enegrecer algo que foi criado por brancos. Também existe uma crítica a uma possível exclusão dos homens negros pelo feminismo. Como a senhora enxerga essas ideias?
A primeira parte da pergunta é simplesmente errada. Eu não vou discutir isso, porque acredito que é um resultado de simplesmente não se saber o que é o feminismo negro. Quando ‘Pensamento feminista negro’ foi lançado, a primeira edição tinha essas três palavras bem grandes na capa, e uma aluna descreveu como era carregar o livro no ônibus. As pessoas iam até ela e falavam: “Eu não gosto disso!”, e ela respondia: “Como você sabe o que é se não leu?”. [Risos] Existe um ponto em que a gente simplesmente não pode se submeter à ignorância e pode só dizer: “Há diversas oportunidades para você aprender o que é o feminismo negro”.
A escritora Ana Maria Gonçalves, a jornalista Flávia Oliveira e a artista Roberta Estrela D’Alva, que compuseram a mesa ‘Seu lugar é’ com Patricia Hill Collins, aplaudem a socióloga na Flup. Foto: Walter Lima/The Intercept Brasil
A questão dos homens negros é muito importante. Há formas em que as mulheres negras e o feminismo negro estão aliados aos homens negros. E há questões em que é preciso haver uma organização independente em relação a eles. Mas se você vê seu mundo restrito a essas duas opções, você poderia facilmente dizer que o feminismo é terrível e anti-homem, ou dizer que os homens são tão incorrigíveis e que você vai ficar com o feminismo negro, em vez de pensar que esses são dois projetos interdependentes.
Eu gostaria de dar crédito aos homens. Muitos foram além desse referencial de que “se a mulher avança, isso é um problema para mim, porque eu deveria sempre ser o líder, dominar, estar no topo”. Quem pensa assim são os homens frágeis. Há um conceito da fragilidade branca que estamos discutindo nos Estados Unidos, mas há uma masculinidade frágil entre muitos homens negros. Tantas coisas foram feitas contra eles que é quase insultante que uma mulher possa se sentir empoderada, se posicionar ou ter algo próprio dela que não o envolva. Isso é muito ameaçador. Os homens têm que melhorar. E eles conseguem fazer isso. Eu sei que conseguem. [Risos]
Há um conceito da fragilidade branca que estamos discutindo nos Estados Unidos, mas há uma masculinidade frágil entre muitos homens negros.
A palavra “feminismo” ainda assusta muitas mulheres. Devemos tentar ressignificá-la ou deixarmos ela de lado e acharmos outra forma de nos comunicar?
Eu pergunto: “por que você tem medo de uma palavra?”. [Risos] “O que numa palavra te assusta, a quais interesses você está servindo ao não usá-la e a quais está servindo com o uso da palavra, em termos de como você a entende?” Se a palavra atrapalha ao ponto de você não conseguir chegar nas questões que ela deveria invocar, significa que o ataque da mídia ao termo feminismo foi bem-sucedido, e é hora de usar outra palavra que descreva aquilo sobre o que você quer conversar.
Se a palavra atrapalha ao ponto de você não conseguir chegar nas questões que ela deveria invocar, é hora de usar outra.
Eu quero poder falar sobre o empoderamento das mulheres, seus direitos reprodutivos, os direitos sobre seus corpos. Que os homens também podem ter direitos sobre seus corpos sem ter que dominar as mulheres. Que todo relacionamento ruim em que os homens estiveram, em que você esteve, é carregado para seu relacionamento atual. Há muitas discussões que acontecem a partir da palavra feminismo, mas colocar tudo ao redor dela e ficar discutindo essa coisa de “bom, eu não sou feminista, você é feminista?” é inútil. Outra discussão inútil é: “Existe mesmo essa coisa de feminista negra ou você está comprometendo a si mesma [ao se identificar assim]?”. O que realmente precisa ser discutido é o que está no âmago do feminismo, se essa palavra facilita essa discussão e os possíveis benefícios de as mulheres largarem o termo. O que funciona em seu melhor interesse?
A Juliana Gonçalves, que montou a entrevista comigo, faz parte do coletivo feminista Minas da Baixada que atua na Baixada Fluminense. Elas evitam usar a palavra feminismo em algumas atividades, porque isso afasta as mulheres. Para além disso, como podemos nos comunicar melhor?
Quando eu estava escrevendo o livro, estava enfrentando um problema parecido. Eu estava dando uma disciplina chamada ‘Mulheres negras contemporâneas’. Isso é bem neutro, certo? E a forma de ensinar era que cada tema, que correspondia a cada um dos capítulos do livro, dizia respeito a mulheres negras. Todo mundo concordava comigo, mulheres e homens negros. O título da última aula era ‘Feminismo negro’, e todos ficaram esperando por aquele dia. Seguimos até a última aula e eu disse: “Ok, vocês todos queriam falar sobre feminismo durante o semestre. Agora vamos falar sobre feminismo negro. Como vocês se sentem a respeito de tudo que conversamos na disciplina? Questões de violência doméstica, de família, de reprodução, todas essas coisas que as mulheres negras enfrentam?” Muitas alunas estavam se dando conta de que enfrentavam esses problemas, e os homens estavam entendendo melhor a vida das mulheres. Como resultado disso, eu falei: “Vou dizer o que é o feminismo negro: isso é feminismo negro.” [Risos]
Exemplares do livro ‘Pensamento feminista negro’, lançado em 1990 nos Estados Unidos e publicado no Brasil pela primeira vez em julho deste ano. Foto: Divulgação/Editora Boitempo
Não havia nenhum propósito em discutir a palavra o semestre todo, porque ela atrapalha. Eles falaram [em tom de quem caiu numa pegadinha]: “Você é tão sagaz, Dra. Collins!”. E eu: “Eu sei que sou sagaz. Agora vocês têm que dar um passo atrás e se perguntarem: qual era a relação de vocês com essa palavra e com esse discurso antes de saber o que eram? De onde isso vinha e os interesses de quem vocês estavam servindo ao chegar com essas perspectivas?”. Eles repetiram: “Você é tão sagaz, Dra. Collins!”, e eu só falei: “Quer saber, essa disciplina acabou e vou deixar vocês com essas perguntas. Dispensados.” [Risos]
Uma aluna leu o livro e disse: ‘Essa parte é muito minha avó. Eu a entendo melhor agora’. Aí que eu soube que tinha acertado.
É por isso que o livro é assimilado desse jeito. Essa é a história dele. Eu não cheguei falando: “Isso é pensamento feminista negro, essa é a disciplina e nós vamos recrutar…!”. Eu estava desenvolvendo os argumentos a partir da vida deles, certo? E dizendo mentalmente: “Isso é feminismo negro ou que o ele deveria ser”. Eu amei essa pergunta, porque é fundamentalmente sobre como temos que pensar fora da caixa a respeito da forma que fazemos nosso trabalho. Na verdade, foi daí que veio o livro. Deu para ver o peso daquilo, então eu pedi quatro universitários da aula para lerem ele para mim.
Qual foi a reação deles?
Foi muito legal. Quando cheguei nas partes em que não estava muito segura, eu falei: “Quero saber sobre o que esse livro faz vocês pensarem. Quando você chega na página tal, no que vocês pensam? Apontem para mim as partes que fazem vocês refletirem.” Eles indicavam as partes em que eu estava insegura, e uma jovem disse: “Essa parte é muito minha avó. Eu entendo totalmente isso e entendo minha avó melhor agora”. Foi aí que soube que tinha acertado. Eu não estava olhando para os poderes do além ou para a ideologia. Era muito pé no chão, sobre o que as pessoas tinham me dito, o que tinham trazido, o que tinham feito.
Patricia Hill Collins reforça mensagem que deixou na parede do Sesc Pinheiros em 18 de outubro: “O futuro é nosso! Permaneçam fortes!”. Foto: Divulgação/Editora Boitempo
Falando em encarceramento em massa, eu dei uma palestra numa prisão. Existia um grupo de leitura lá e eles organizavam os homens, que estavam lendo meu livro. Chegou um jovem que tinha lido cada página de ‘Pensamento feminista negro’. Ele tinha um monte de post-its despontando do livro. Foi tão incrível. Um desses homens veio e disse: “Eu realmente consigo entender bem melhor o que eu tenho feito com a minha vida. Eu vejo isso agora”.
Eles estavam usando sua experiência de encarceramento de forma diferente, para se reabilitarem. Eu realmente acredito em possibilidades para todas as pessoas, se elas estiverem abertas à mudança. Esses pobres homens que estão andando por aí dizendo: “O feminismo negro é ruim, não entra nessa” são os que estão feridos.
Por Bruna de Lara e Juliana Gonçalves