Grupo antiaborto faz vigília no Pérola Byington e ‘legalistas’ reagem

01 de novembro, 2019

Religiosos rezam contra aborto legal no hospital; após relatos de constrangimentos, grupo de moradores montou tenda ao lado para ‘proteger pacientes e funcionários’

(O Estado de S.Paulo, 01/11/2019 – acesse no site de origem)

SÃO PAULO – Às 13h55, na Bela Vista, centro de São Paulo, um homem de meia idade, de cabelo branco e bigode escovinha, levantou um crucifixo para o alto e puxou a oração: “Livrai-nos da maldição do aborto no Brasil, no Pérola Byington e no mundo inteiro”. Em coro, outras sete pessoas repetiram a prece – quatro delas, mulheres.

Os fiéis fazem desde setembro a vigília “40 dias pela vida SP”, que deve terminar no domingo, 3. Segurando terços, eles rezam na praça em frente ao Pérola Byington, hospital de referência no atendimento a mulheres vítimas de violência, que realiza aborto para casos previstos na lei: quando há estupro, risco de morte da mãe ou anencefalia do feto.

Durante a vigília do grupo, pacientes e funcionários da unidade relatam uma escalada de episódios de constrangimento e até de agressão. Em resposta, alguns moradores do bairro, que se declaram “legalistas”, decidiram montar uma segunda tenda no local – em uma espécie de “contravigília”. Segundo afirmam, a convivência tem sido pacífica desde então.

O episódio-chave aconteceu no dia 21. Uma vítima de estupro coletivo, que faz tratamento no Pérola Byington, foi tirar satisfação com o grupo de religiosos e acabou recebendo um mata-leão. Também há relatos de médicos que eram xingados de “assassinos”.

“Não viemos fazer um movimento pró-aborto, mas uma mobilização para evitar que as mulheres e funcionários sofram assédio ou violência”, diz a escritora Daniela Neves, de 47 anos, responsável por coordenar a “contravigília”. Segundo conta, ela tem recebido mensagens de agradecimentos das pacientes. “Elas perguntam se estamos aqui, se está seguro para vir. Nossa presença inibe. É como uma espécie de ‘muro’.”

Não viemos fazer um movimento pró-aborto, mas uma mobilização para evitar que as mulheres e funcionários sofram assédio ou violência.
Daniela Neves, escritora

 

Além de vizinhos do hospital, o grupo ganhou apoio de ativistas e estudantes – a julgar pelo grupo de Whatsapp, são quase 90 pessoas. O revezamento na praça mantém cerca de 20 voluntários por vez. Na maior parte do tempo, ficam sentados em cadeiras de praia, conversando, mas já chegaram a fazer um churrasco no local para comemorar o aniversário de uma participante.

Na tarde desta quinta-feira, 31, o grupo recebeu visita dos vereadoresEduardo Suplicy e Juliana Cardoso, do PT. Na saída, Suplicy tentou cumprimentar os ativistas antiaborto, mas foi ignorado. “Retira-te, satanás”, dizia o grupo na hora, em oração.

“Não estavam com disposição de conversar. Se eles estivessem me estendido a mão, eu teria conversado”, declarou, mais tarde, o vereador ao Estado.

Não estavam com disposição de conversar. Se eles estivessem me estendido a mão, eu teria conversado
Eduardo Suplicy, vereador

Grupo diz que está na praça ‘só para rezar’

Estado tentou falar com o grupo duas vezes, mas nenhum participante da vigília aceitou conceder entrevista. A justificativa foi a mesma: “só estavam ali para rezar”.

No Facebook, o “40 dias pela vida SP” publica vídeos e fotos em que costuma enaltecer as orações e a presença de fiéis na praça. Em diversas postagens, os ativistas dizem estar passando por “provações”, defendem os “brasileirinhos que querem vir ao mundo” e atacam o “encardido”, o “capiroto” ou outras variações. Também negam agressões.

“Não houve mata leão. Isso é falso testeminho dá cadeia (sic)”, diz um dos comentários.

Na semana passada, a página publicou fotos com a primeira-dama Bia Doria, que recebeu 58 curtidas. Em nota, contudo, ela relata que, na verdade, havia feito uma visita ao hospital para campanha do Outubro Rosa e, ao sair, “educadamente atendeu o pedido do grupo para conhecer a tenda”.

“A primeira-dama solicitou que o diretor do hospital Pérola Byngton, Luiz Henrique Gebrim, esclarecesse aos manifestantes o trabalho de excelência e referência internacional feito pelo governo do Estado de SP na unidade”, afirma.

A tenda antiaborto expõe uma série de mensagens, além de um altar com imagens de santos e de camisas à venda. Há unidades nas cores azul, rosa e branca: R$ 30, cada. Um dos cartazes é ilustrado com um bebê erguendo o punho: “Vamos defender a vida dos coleguinhas”, diz. Em outro: “A vida começa na concepção”.

Por sua vez, a tenda “legalista” exibe frases opostas. “Bíblia não é Constituição”, escreveram. Já a maior faixa do grupo fica voltada para a entrada do hospital. “Mulheres, estamos com vocês”, diz.

Funcionária do hospital há mais de 20 anos, a psicóloga Daniela Pedroso atende  vítimas de violência sexual.

“O Pérola Byington trabalha dentro da lei”, afirma. Segundo explica, os procedimentos realizadas na unidade não são “contraceptivos” – mas sim para garantir o direito das mulheres. “Elas entendem a interrupção dessa gestação como a melhor dentro das piores opções.”

Daniela conta que já atendeu pacientes que se queixaram da vigília. “A nossa preocupação maior, de fato, é com as mulheres. Elas já passam por situação delicada, e isso as constrange”, diz. “Pode ser que deixem de ver o hospital como local de acolhimento.”

A nossa preocupação maior, de fato, é com as mulheres. Elas já passam por situação delicada, e isso as constrange.

Daniela Pedroso, psicóloga do Hospital Pérola Byington

 

Por Felipe Resk | Colaborou André Marinho, especial para o Estado

 

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