No Brasil, a expectativa de vida da comunidade é de 35 anos. Honduras contou 21 assassinatos em seis meses. “Nossas vidas não são importantes”, diz uma ativista
(El País, 03/11/2019 – acesse no site de origem)
Cidade Do México – A vida de Anahy Rivas, de 25 anos, terminou de forma violenta na madrugada do dia 26. A mulher transexual exercia a prostituição perto do bulevar de Los Héroes, uma avenida importante de San Salvador, quando alguns homens em um carro se aproximaram para solicitar seus serviços. Quando ela chegou perto do veículo, eles a agarraram à força e a puxaram para dentro, mas o carro arrancou antes que a mulher entrasse totalmente, e suas pernas foram arrastadas ao longo de cinco quilômetros, segundo o relato feito ao EL PAÍS por ativistas da comunidade LGBTI de El Salvador, o pequeno país centro-americano onde se multiplicam os crimes de ódio contra transexuais. A jovem foi asfixiada e também tentaram degolá-la, de acordo com o relato. O corpo foi abandonado na entrada de uma discoteca da capital salvadorenha. “É uma barbárie”, resume Amalia, uma ativista transexual que luta para que as autoridades de seu país investiguem, esclareçam e criminalizem quem comete atrocidades como essa. “Isso nos preocupa, nos assusta e nos revolta”, afirma.
O caso de Anahy não é o único registrado nesse país de apenas 21.000 quilômetros quadrados e 6,4 milhões de habitantes, com uma população conservadora e assolado pela violência e pela pobreza. Camila Díaz, que tinha 29 anos e também exercia a prostituição, foi encontrada em janeiro com numerosos golpes e inconsciente perto de uma área de clubes noturnos da capital salvadorenha. Foi levada para um hospital, onde morreu dias depois. O laudo forense apontou politraumatismo contuso como a causa da morte. A imprensa salvadorenha informou que a mulher tinha se envolvido em uma briga, por isso foi detida por policiais locais, que segundo as testemunhas a espancaram. O corpo foi encontrado mais tarde perto de onde Camila ganhava a vida. Três policiais foram detidos por ligação com o caso. Dias depois, outra mulher trans, conhecida como Lolita, foi assassinada a machetadas em Sonsonate, um pequeno município no oeste de El Salvador. Esses crimes continuam impunes. “Ver como nossas companheiras são assassinadas nos causa uma grande revolta”, diz Amalia, ativista trans que trabalha na Comcavis, uma das organizações mais atuantes na defesa dos direitos da comunidade LGBTI em El Salvador, onde foram assassinadas 68 mulheres transexuais entre 2016 e 2019. “A impunidade é muito alta: esses crimes não são investigados nem criminalizados pelas autoridades, apesar de serem cometidos com enorme violência”, afirma Amalia.
Na vizinha Honduras, a realidade não é muito diferente. A Comissão Nacional dos Direitos Humanos (Conadeh) registrou 325 homicídios de integrantes da comunidade LGBTI entre 2009 e 2019, e até julho haviam sido cometidos 21 assassinatos por ódio contra transexuais. O período de 3 a 8 de julho foi particularmente fatídico, com pelo menos três homicídios de mulheres transexuais: no dia 3, Antonia Laínez, de 38 anos, foi assassinada a tiros no departamento de Yoro, no norte do país; no dia 6, Santi Carvajal foi atacada a bala na cidade de Puerto Cortés, também no norte da Honduras. Carvajal morreu no Hospital Mario Catarino Rivas de San Pedro Sula, a segunda cidade mais importante do país centro-americano. Ela comandava o programa de tom crítico La Galaxia de Santi em um canal de televisão local. E na madrugada de 8 de julho, na região central de Honduras, foi morta com um tiro no abdome a ativista Bessy Ferrara, de 40 anos.
A Rede Lésbica Cattrachas faz um minucioso trabalho de documentação de crimes contra gays, lésbicas e transexuais desde 1994. Naquele ano, começaram os registros nas estatísticas locais, que mostram que até 2019 118 transexuais foram mortos, 65 deles por armas de fogo. Ler os registros da Cattrachas é mergulhar no horror: “Os modos utilizados com maior frequência [para assassinar trans] foram execução [com tiro na cabeça], com 33 casos, tiros múltiplos (31), esfaqueamento (12), estrangulamento (5), lapidação (5), espancamento (7), machetada (4) e outros”. O nível de impunidade desses crimes também é alto: 96%, segundo os relatórios da Cattrachas.
Jovens transexuais que exercem a prostituição na avenida Puente de Alvarado, na capital mexicana. Foto: Héctor Guerrero (El País).
Brasil e México são os países latino-americanos com os maiores índices de violência contra gays, lésbicas e transexuais. O Brasil é considerado o país mais perigoso do mundo para esse coletivo. No país, a expectativa de vida das pessoas transexuais é de 35 anos. Até julho foram registrados 123 assassinatos. As estatísticas sangrentas também se destacam no México, um país assolado pelo crime organizado e por uma guerra sem trégua contra os cartéis das drogas. Durante o Governo de Enrique Peña Nieto (2012-2018), foram assassinadas 473 pessoas desse coletivo, entre elas 261 transexuais. Os Estados mais violentos são Veracruz, Guerrero, Quintana Roo, México, Chihuahua, Puebla e Tamaulipas. Ari Vera, presidenta da organização Almas Cativas, que trabalha com mulheres transexuais presas no México, não lamenta apenas a violência que as atinge, mas também o nível de impunidade em seu país. “Não nos garantem o acesso à Justiça devido aos preconceitos contra nós, somos vistas em grande parte como pessoas problemáticas, sem valor. Se queremos denunciar um ato de violência, a autoridade não nos leva a sério. Nossa palavra não importa”. Embora tenham ocorrido avanços nos direitos no México, Vera diz que as pessoas transexuais ainda são as que sofrem maior discriminação: “Nada menos que 87% sofrem violência psicológica”.
Voltando a El Salvador, na segunda-feira foram sepultados os restos mortais de Anahy, a jovem transexual assassinada por desconhecidos. Parentes e amigos, vários deles transexuais, reuniram-se ao redor do caixão. Antes de ser enterrado, o corpo de Anahy sofreu uma última afronta por parte das autoridades salvadorenhas: como a vítima não tinha pais nem parentes próximos, reivindicar os restos mortais foi um pesadelo para aqueles que foram ao Instituto Médico Legal. “Nossas vidas não são importantes”, lamenta Amalia, a ativista trans que luta para que esses crimes não fiquem impunes.
Por Carlos Salinas