O lar não é um lugar seguro para milhões de mulheres
(Folha de S.Paulo, 09/12/2019 – acesse no site de origem)
Se eu pudesse ter um desejo atendido, poderia ser o fim do estupro. Isso significa que uma importante arma de guerra sairia do arsenal de conflitos, assim como a ausência de risco diário para meninas e mulheres em espaços públicos e privados. Haveria a remoção de uma afirmação violenta de poder e mudança de longo alcance para nossa sociedade.
O estupro não é um ato breve e isolado. Danifica a carne e reflete na memória. Pode causar mudança de vida, com consequências que não foram escolhidas —como gravidez ou DST. Seus efeitos devastadores e duradouros atingem outras pessoas: família, amizades, parcerias e colegas. Tanto no conflito quanto na paz, ele molda as decisões das mulheres de sair de suas comunidades por medo de ataques ou pelo estigma das sobreviventes.
Mulheres e meninas que fogem de casa como refugiadas correm risco de transporte perigoso e condições arriscadas de vida, que podem acarretar portas fechadas, iluminação e saneamento impróprios. Meninas casadas quando eram crianças, em busca de maior segurança em casa ou em campos de refugiados, podem ser encontradas em condições legitimadas de estupro, com pouco recurso para as que desejam fugir para um abrigo com acomodações seguras.
Na grande maioria dos países, meninas adolescentes são as que correm o maior risco de violência sexual por ex-companheiro, marido, parceiro ou namorado. Como sabemos pelo nosso trabalho sobre as outras formas de violência, o lar não é um lugar seguro para milhões de mulheres e de meninas.
Quase completamente, a maioria dos estupradores não são identificados e acabam impunes. Para que as mulheres denunciem, em primeiro lugar, é necessário resiliência para reviver o ataque, certo conhecimento sobre onde ir e um grau de confiança na capacidade de resposta dos serviços procurados —e se, de fato, houver serviços disponíveis.
Em muitos países, as mulheres sabem que são mais propensas a serem culpadas do que consideradas vítimas quando denunciam a violência sexual e precisam lidar com o sentimento injustificado de vergonha.
O resultado é o silenciamento das vozes das mulheres em relação ao estupro, diminuição das denúncias e impunidade contínua para os estupradores. Pesquisas mostram que apenas uma pequena fração das meninas adolescentes que foram submetidas ao sexo forçado procura ajuda profissional. Menos de 10% das mulheres que buscam ajuda após sofrer violência entraram em contato com autoridades.
Um passo positivo para aumentar a responsabilidade é tornar o estupro ilegal no mundo todo. Atualmente, mais da metade dos países ainda não possuem leis que criminalizam o estupro conjugal ou que se baseiam no princípio do consentimento.
Junto com a criminalização do estupro, precisamos colocar a vítima no centro da questão e responsabilizar os estupradores. Isso significa fortalecer a capacidade das autoridades responsáveis para investigar esses crimes e apoiar as sobreviventes por meio do processo de justiça criminal, com acesso à assistência jurídica, polícia e serviços de justiça, bem como serviços de saúde e sociais, especialmente para as mulheres marginalizadas.
Ter mais mulheres na polícia e treiná-las adequadamente é um passo crucial para garantir que as sobreviventes sintam que suas denúncias estão sendo levadas a sério em todas as etapas, o que pode acabar sendo um processo complexo.
O progresso também exige que enfrentemos com sucesso as muitas barreiras institucionais e estruturais, sistemas patriarcais e estereótipos negativos em torno de gênero que existem nas instituições de segurança, polícia, judiciário e em outras instituições. Quem faz do estupro arma sabe o quão poderosamente traumatiza e como suprime a voz e a ação. Este é um custo intolerável para toda a sociedade. Nenhuma geração futura deve lutar para lidar com um legado de violação.
Nós somos a geração igualdade e iremos acabar com o estupro!
Por Phumzile Mlambo-Ngcuka