Debora Diniz fala sobre o caso da turista estuprada em Salvador, na Bahia: “Neste caso, o mandato de masculinidade se expressa na figura dos agressores, mas também do policial que se recusa enquadrar o estupro pela perspectiva da vítima”
(MarieClaire, 15/01/2020 – acesse no site de origem)
“Andar à noite sozinha na rua é como dirigir um carro a 200 km/h”. A metáfora foi feita por um comandante da polícia em Salvador. De que risco falava o militar? Da mulher ser estuprada. O caso foi real e essa foi a resposta da polícia na tentativa de isentar-se da responsabilidade de os tarados terem o direito de circular livremente e as mulheres não.
O caso parece ser comum ao enredo vulgar e agressivo de como o patriarcado apreende o estupro cruento — a rapinagem da rua, de homens desconhecidos a mulheres anônimas é responsabilidade das mulheres que se expõem. Ou melhor, que insistem em caminhar pelas ruas, seja para trabalhar, estudar ou, ousadamente, fazer turismo.
Se a brutalidade ocorreu é porque a “vítima caminhou na praia entre 7 e 11 da noite”, diz ele. É como se ela tivesse escolhido brincar de roleta russa com uma arma, ou, nos termos policiais, brincar de fórmula 1. Até as alegorias são masculinas, um sinal de como os afetos são determinados pelos poderes.
É fácil apontar o dedo para o equívoco de julgamento do policial. Não foi o primeiro, e tristemente não será o último. A inquietação é pensar nas razões da permanência. Elas são como uma maldição contra as mulheres: a colocam e antecipam as violências sofridas.
Uma delas é a naturalização do estupro como um ato comum à permanência das mulheres e meninas na rua. Ao se dizer “há esse risco”, se inverte a lógica de causalidade do crime. É a mulher que se expõe, ou mais longe ainda: é a mulher que buscaria a violência. O corpo da mulher na rua é um corpo disponível à espoliação, seja pelo tarado que a violenta ou pelo policial que a silencia, e, por isso, objeto de desumanização pela força ou pelo julgamento.
Por Debora Diniz