Uma espécie de revolução ganha corpo dentro das escolas públicas pernambucanas. Seu principal efeito é acolher pessoas historicamente excluídas do processo educacional. Dados inéditos levantados junto à Secretaria Estadual de Educação apontam um crescimento no número de estudantes trans e travestis usando o nome social dentro do ambiente escolar gerido pelo estado. Entre 2017 e 2019, esse número praticamente dobrou. Ser chamado pelo nome com o qual nos identificamos também parece revolucionário. No mês dedicado à visibilidade trans, pautar debates sobre essa população é cada vez mais necessário.
(Diário de Pernambuco, 26/01/2020 – acesse no site de origem)
O processo para garantir o direito de usar o nome social na escola parece simples. A pessoa acessa o site da Secretaria de Educação e baixa um formulário padrão para ser preenchido e assinado. Se o estudante é maior de 18 anos, ele assina o documento de forma autônoma. No caso de ser menor de idade, ele precisa de autorização de um dos pais (pode ser somente o pai ou somente a mãe) ou de um responsável legal. Depois, o documento deve ser entregue na secretaria da escola. Nem sempre, no entanto, o processo acontece de forma pacífica.
“No caso de haver conflito entre a família e o estudante, é possível existir a intervenção da Defensoria Pública para fazer valer o direito”, explicou Day Santos, da Unidade de Educação para as Relações de Gênero e Sexualidade, ligada à Gerência de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. Day conta que a unidade foi criada no ano passado, mas que ela já atua na secretaria desde 2017. Day é mulher trans.
A estudante Ariel Niara tem 16 anos. No ano passado, precisou travar uma luta com a família e a unidade de ensino para garantir o direito de ser chamada de Ariel dentro da escola. “O meu caso foi complicado. Na minha casa, o ambiente é religioso e meus pais colocaram a condição de que para eu morar com eles, tinha que ser um menino. Por conta disso, ameaçaram me expulsar de casa. Passei a morar com a mãe de uma amiga, que está cuidando de mim e entrou com um processo de guarda.”
Como os pais de Ariel não assinaram o formulário e a pessoa com quem ela está convivendo ainda não é sua responsável legal, a estudante foi orientada a procurar a Defensoria Pública para solicitar o uso do nome na escola. “A escola foi obrigada a mudar meu nome no sistema digital. Antes disso, eles eram transfóbicos. Nunca mais ninguém errou meu nome. Temos que ir atrás de nossos direitos. Isso para mim significa tudo. É quem eu sou. É meu nome de verdade. Ser chamada pelo nome em uma instituição onde passo nove horas por dia da minha vida é revolucionário.”
Casos como o de Ariel têm chamado a atenção da secretaria. Em 2017, 18% dos estudantes que usavam nome social eram menores de idade. Em 2019, o percentual chegou a 30%. “Isso sinaliza que os estudantes menores de 18 anos têm se apropriado da política. Mesmo com os conflitos, insistem em ter o direito garantido”, explicou Day Santos.
Valentina conta não ter problemas na escola estadual onde termina, este ano, o Ensino Médio, mas viveu um inferno quando era criança. “Acho que isso passa pela conscientização da gestão, que aprende a olhar para a gente que é trans. Quando menor, sofri violência física e psicológica, tanto na escola quanto em casa. Minha mãe queria tirar minhas características, me aniquilar, tirar minha identidade.”
Escola, diz Valentina, não é um privilégio para pessoas como ela. É um direito. “No entanto, é o lugar onde mais se produz violência contra a população LGBTT”, denuncia. Fernanda Falcão, ativista da causa LGBTT em presídios do estado, confirma que nem mesmo a sua passagem por uma unidade penal foi tão violenta quanto a estadia em uma instituição de ensino superior.
O uso do nome social traz implícito outras pautas. Usar o banheiro onde o estudante se sente confortável com relação à sua identidade de gênero é uma delas. Day Santos, no entanto, ressalta que essa mudança precisa ser feita com cautela. “A rede garante essa escolha do banheiro, mas é preciso um trabalho de sensibilização para não acontecer de forma violenta. Não se trata de um processo simples. Existe uma naturalização social com relação à violência contra esses corpos. A sociedade naturaliza.”
Alberto Pires é coordenador do projeto Juventude colorindo ideias: protagonizando o ativismo LGBTT, que oferece aulas para pessoas negras, da periferia e LGBTTs. Ele destaca a existência de legislações que garantem os direitos dessa população em vários espaços e também na universidade pública. Uma delas é a portaria normativa nº 1, de 20 de fevereiro de 2015, da Universidade Federal de Pernambuco. Ela regulamenta o uso de nome social de travestis e transexuais nos registros acadêmicos da instituição. Na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), também há resolução no mesmo sentido, a de número 21, de 3 de março de 2015.
Outro debate é quanto à formação de professores no ensino superior. “Na rede estadual nós temos um currículo que permeia a discussão de gênero, que deve estar em todas as disciplinas. As pessoas precisam se ver dentro do currículo da escola. Buscamos preencher essas lacunas do ensino superior”, ressaltou Day. A unidade onde ela está inserida tem o objetivo de fortalecer as discussões sobre gênero e diversidade sexual sob a perspectiva de garantia de políticas educacionais. Entre as atividades, oferta espaços de formação para educadores, dialoga com movimentos sociais e promove ações para estudantes de todo o estado, como a mostra de cinema para criações de gênero e diversidade, a Andanças.
Gi Carvalho, do grupo Mães pela Diversidade, lembra outra pauta relacionada ao uso do nome social. “Não é somente a questão do banheiro. Nas escolas, você vê o professor separando os alunos por grupos de meninos e meninas. Mas e se a pessoa não se identifica com aquele gênero e é colocada em um lugar que não é o dela somente pela autoridade de um professor? Quem deve determinar a identificação é a pessoa”, ressaltou. O Mães pela Diversidade tem 52 membros em Pernambuco e pode ser encontrado pelas redes sociais.
Joelma Silva, 43, mulher trans, permaneceu 22 anos fora da escola. Um espaço que na infância somente lhe trouxe problemas por conta das agressões de colegas. Aos poucos, passou a ter dificuldade em ler e aprender. Já não queria frequentar as aulas e ganhou notas vermelhas. No ano passado, concluiu o EJA como aluna destaque. Voltou à escola já adulta, aos 41, com um nome social nos documentos e uma certeza na vida: é preciso enfrentar a transfobia dentro da lei e sensibilizando as pessoas. “Agora eu sei. Aquilo que não me mata, me fortalece.”
Por Marcionila Teixeira