Dia Nacional da Visibilidade Trans: entenda quais os direitos que a legislação brasileira garante a travestis e pessoas transgênero

29 de janeiro, 2020

Nome social e cirurgia de redesignação sexual no SUS são exemplos de conquistas, mas o acesso nem sempre é assegurado. Violência e discriminação ainda são realidade para a maioria

(Celina/O Globo, 29/01/2020 – acesse no site de origem )

O dia 29 de janeiro é dedicado às discussões sobre a visibilidade de pessoas transexuais travestis no Brasil. Nesta data, em 2004, lideranças do movimento pelos direitos de pessoas trans se reuniram no Congresso Nacional, em Brasília, para lançar a campanha “Travesti e Respeito”. Promovida em parceria com o Ministério da Saúde, tinha como objetivo incentivar a inclusão social desse grupo. Desde então, tivemos avanços na garantia de direitos a essa população, mas muitos ainda encontram desafios para acessá-los.

Para Leonardo Tenório, pioneiro na militância dos homens trans no Brasil, a violência contra pessoas transexuais ainda é um dos principais obstáculos a serem enfrentados.

— Independentemente da classe social ou localidade, você pode sofrer violência em qualquer lugar só por ser uma pessoa trans. Tanto na rua, quanto dentro de casa, pela própria família — ele afirma.

O ativista é um dos muitos brasileiros que já precisaram conviver com a transfobia. Durante a infância e a adolescência foi vítima de violência doméstica e chegou a ser expulso de casa. Para Leonardo, o acesso à saúde pública e a empregabilidade são outros pontos que precisam de atenção urgente:

— Conseguir emprego ainda é uma dificuldade. Por isso, muitas pessoas acabam parando na informalidade ou na prostituição. A população brasileira precisa entender que somos seres humanos iguais e que precisamos de direitos iguais — defende o ativista, que recomenda a quem passar por situação de discriminação buscar o apoio de movimentos sociais, presentes em diferentes estados do país.

Tathiane Aquino de Araújo, presidente da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, acredita que ainda não podemos elencar avanços que sejam uma solução para as demandas das pessoas trans. Segundo ela, muitas políticas não são aplicadas de fato. Como exemplo, Tathiane cita a dificuldade encontrada em muitos cartórios para realizar a alteração do nome nos documentos e a existência de poucos ambulatórios que realizem o processo transexualizador.

A presidente da Rede Trans destaca também que a discriminação contra essa população gera uma “morte social”, que não é tão evidenciada quanto os assassinatos e casos de violência física, mas que precisa ser visibilizada.

— A morte social é silenciosa. É a morte daquela cidadã que foi expulsa de casa e não tem um aparato social, que é expulsa da escola e não tem a mesma oportunidade no mercado de trabalho. Essa pessoa não conseguiu acessar quase nenhuma política pública nem ter uma vida social digna. Quando ela não se suicida, vive triste e muitas vezes jogada nas mazelas sociais porque a nossa sociedade não a enxerga como cidadã de fato — afirma Tathiane, reforçando que este é o tema de um ato realizado pela Rede Trans nesta quarta-feira (29), na Praça dos Três Poderes, em Brasília.

Neste Dia Nacionalda Visibilidade Trans, CELINA conversou com a advogada e professora Giowana Cambrone, vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB do Rio de Janeiro, para entender quais direitos a legislação brasileira já garante às pessoas transexuais.

Nome social e requalificação civil

O nome social é aquele pelo qual uma pessoa se apresenta e quer ser reconhecida socialmente, ainda que não tenha retificado os documentos civis. Desde abril de 2016, o decreto nº 8.727 passou a reconhecer que, nas repartições e órgãos públicos federais, pessoas travestis e transexuais tenham sua identidade de gênero garantida e sejam tratadas pelo nome social. Existem também outras legislações sobre esse direito em estados e municípios. No Rio de Janeiro, por exemplo, é possível emitir uma carteira de identidade reconhecida oficialmente com o nome social. Ele também pode ser incluído em documentos como CPF, cartão do SUS e título eleitoral.

— No Brasil, o nome social se constitui como uma gambiarra, porque as pessoas têm uma dificuldade muito grande de retificar o nome nos documentos — explica Giowana Cambrone.

Já a requalificação civil é quando a pessoa altera nome e gênero na certidão de nascimento e, portanto, em todos os outros documentos. Em março de 2018, uma decisão do STF (Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275) passou a garantir que essa alteração seja feita administrativamente em um cartório de registro de pessoas naturais, sem a necessidade de ação judicial.

— É um grande avanço porque reconhece a autodeterminação de nome e gênero,garantindo um direito da personalidade do sujeito, sem precisar de advogado ou acessar o judiciário em um processo moroso — avalia Giowana.

Saúde

Desde agosto de 2008, o Sistema Único de Saúde (SUS) realiza a cirurgia de redesignação sexual para mulheres trans. Em junho de 2019, a portaria nº 1.370 passou a permitir o procedimento também para homens trans. No entanto, acessar esse direito ainda é um desafio.

— A questão da saúde é precária, o que é uma característica geral da saúde no Brasil. Por ser um procedimento de alta complexidade, mas considerado irrelevante pelos órgãos de saúde, outros tipos de tratamento são priorizados — afirma Giowana.

Atualmente existem apenas cinco centros de saúde credenciados pelo SUS que promovem esse tipo de cirurgia no Brasil, localizados nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Goiânia e Recife. Para procedimentos ambulatoriais, que incluem acompanhamento multiprofissional e hormonioterapia, são 12 hospitais referenciados em todo o país. De acordo com o Ministério da Saúde, mesmo não sendo habilitados, o que implicaria em um custeio federal adicional, existem outros serviços de saúde no país que podem realizar procedimentos como mastectomia e cirurgia plástica.

No dia 9 de janeiro deste ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução nº 2.265/2019, que atualiza as regras para o atendimento médico às pessoas transexuais. Entre as principais mudanças está a alteração na idade para a cirurgia, que foi reduzida de 21 para 18 anos. Já as terapias hormonais passam a ser liberadas a partir dos 16 anos. A nova resolução também contempla questões como o bloqueio puberal, “interrupção da produção de hormônios sexuais”, e a hormonioterapia cruzada, “forma de reposição hormonal na qual os hormônios sexuais e outras medicações hormonais são administradas ao transgênero para feminização ou masculinização”, e regulamenta os processos cirúrgicos.

Sobre esta resolução, o Ministério da Saúde afirmou, em nota, que “irá avaliar e discutir com outros órgãos de governo, a partir das normas já existentes, a aplicação ao SUS, que não é automática.”

Ainda no âmbito da saúde, a advogada Giowana Cambrone destaca que alguns protocolos do SUS ainda não são adaptados para pessoas trans.

— Alguns tipos de tratamento referentes à saúde reprodutiva são negados nos sistemas de marcação de consulta. Por exemplo, uma mulher trans que tenha retificado o documento ainda precisa fazer exames de próstata. O mesmo com homens trans que não passaram por cirurgia e precisam fazer exames ginecológicos, mas não conseguem marcar.

Procurado pela reportagem de CELINA, o Ministério da Saúde respondeu, em nota:

“Informamos que, desde 2018, foi retirada a referência ao sexo dos sistemas de atendimento ambulatorial e hospitalar. O sistema apenas emite um relatório de alerta para o gestor, com relação a determinados procedimentos que são realizados em pessoas do sexo masculino, mas se apresenta com o sexo feminino ou ao contrário. Compete ao gestor local analisar cada situação e liberar ou não a apresentação dos procedimentos ora realizados, porém não é impedimento para atendimento. Quanto ao estabelecimento atender ou não, isso vai depender se a unidade for habilitada para o atendimento do processo de transexualização.”

Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos também enviou nota:

“O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por meio da Diretoria LGBT da Secretaria Nacional de Proteção Global, articula reunião com Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social do Ministério da Saúde. A previsão é que aconteça em fevereiro. O objetivo é definir diretrizes e apresentar propostas de avaliação para todos os temas referentes à saúde LGBT.”

Uso do banheiro

No início deste mês, a travesti Lanna Hellen afirmou ter sido proibida de usar o banheiro feminino de um shopping em Maceió. O caso ganhou grande repercussão e colocou novamente em pauta a discussão sobre o uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero.

A advogada Giowana Cambrone explica que ainda não existe legislação específica no país para essa questão. No entanto, ela destaca que a Constituição Federal proíbe qualquer ato de discriminação e prevê a reparação de danos morais causados em decorrência da exposição de uma pessoa a situações vexatórias ou constrangedoras. Em 2015, foi aberto no STF o julgamento de um recurso extraordinário que discute o pedido de indenização formulado por uma pessoa trans que também foi proibida de usar o  banheiro de um shopping. O julgamento, no entanto, foi interrompido por um pedido de vista e segue parado até hoje.

Tathiane Aquino de Araújo, presidente da Rede Trans Brasil, avalia:

— O banheiro é um espaço de necessidades, um local que as pessoas não utilizam para exibir a genitália ou praticar afeto, nenhum tipo de prática que não sejam as suas necessidades fisiológicas, a sua higiene mínima. E, mesmo assim, a gente tem um preconceito da sociedade e falta uma lei que registre isso.

Discriminação e violência

Em junho de 2019, o STF se manifestou em relação a falta de leis para a proteção da população LGBT e criminalizou a homotransfobia. De acordo com a decisão do STF, enquanto não houver legislação específica, atos de homofobia ou transfobia podem ser tipificados como crimes de racismo. Na avaliação da advogada, existe um grande desafio na aplicabilidade dessa decisão:

— A lei que define os crimes de racismo no Brasil não é bem aplicada devido ao texto e sua compreensão. O legislador se refere à discriminação produzida em lugares, enquanto a violência contra pessoas trans possui características de crime de ódio — explica a advogada, ressaltando que é preciso vencer a violência institucional de um sistema de justiça estruturalmente racista e transfóbico. — Embora seja uma decisão importante no aspecto simbólico, a experiência nos mostra que o racismo estrutural no sistema de justiça impede que os crimes raciais sejam denunciados e punidos como prevê a norma. Por isso, há o risco de a decisão ter pouca efetividade pela transfobia institucional do mesmo sistema de justiça.

Para Giowana, um passo a ser dado é a cobrança de uma legislação mais eficaz:

— O Brasil é um dos países que mais mata pessoas trans no mundo. Precisamos de ações mais específicas. Temos que cobrar do Congresso a edição de uma norma autônoma que fale sobre isso e tipifique melhor a homotransfobia.

A advogada cita como um exemplo de legislação eficiente a Lei Maria da Penha. Ela traz um arcabouço de políticas públicas, com acolhimento, prevenção da violência e educação. Questionada sobre a possibilidade da aplicação da lei no caso de mulheres trans, afirma ser uma questão polêmica e não uniformizada. Existem casos em que foi aplicado o entendimento de que era cabível, e em outros não. A advogada acredita, no entanto, que a violência sofrida por mulheres cis e trans são diferentes, apesar de terem um fundo comum.

— Normalmente, a mulher cis sofre violência doméstica, por seu companheiro, enquanto a pessoa trans é violentada por desconhecidos, na rua — ela explica.

O mesmo desentendimento ocorre no caso da lei de feminicídio, cujo projeto de lei inicial previa o transfeminicídio, retirado depois. Portanto, também não há uma uniformidade na interpretação da lei.

Por Raphaela Ramos

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