Notificação compulsória: Uma análise crítica da Lei 13.931/2019, por Fabíola Sucasas Negrão Covas, Rafael de Oliveira Costa e Renata Rivitti 

04 de fevereiro, 2020

Derrubado o veto do Presidente Jair Bolsonaro, a Lei 13.931/19 foi publicada em 11 de dezembro de 2019 e entrará em vigor em 10 de março de 2020. Ela altera a Lei 10.778, de 24 de novembro de 2003, que estabelece a notificação compulsória nos casos de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados, para prever a obrigatoriedade da comunicação à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas.

(Jota, 04/02/2020 – acesse no site de origem)

A Lei nº 10.778/2003 determinava a notificação compulsória das autoridades sanitárias nos casos de violência contra a mulher. Na oportunidade em que a vítima era atendida por serviços de saúde públicos ou privados – ou seja, hospitais, prontos-socorros, consultórios, entre outros -, devia-se promover a notificação compulsória das autoridades sanitárias. Vejamos:

Art. 1º Constitui objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, a violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados.

A Lei n° 13.931/2019, modificando este cenário, passou a estabelecer expressamente que a notificação deve ser dirigida não apenas às autoridades sanitárias, mas também à autoridade policial. Vejamos:

Art. 1º – Constituem objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados. § 4º Os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher referidos no caput deste artigo serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos.

Mas afinal, o que muda com a nova lei?

A notificação compulsória não se confunde – e nunca se confundiu – com denúncia criminal. Apesar disso, esta ideia sempre foi – e ainda é – um dos entraves no enfrentamento à violência doméstica e familiar, repercutindo na subnotificação dos casos.

Com efeito, o termo “notificação compulsória” guarda sentido técnico em Saúde, tendo por finalidade o fornecimento de dados para subsidiar a vigilância epidemiológica e proporcionar um conjunto de ações para o conhecimento, a detecção ou a prevenção de qualquer mudança nos fatores de saúde individual ou coletiva, e, assim, recomendar e adotar medidas de controle de doenças ou agravos[1]. Ou seja, está dentro dos muros da Saúde e tem caráter eminentemente de política preventiva.

As hipóteses de obrigatoriedade da notificação contempladas em listagem nacional[2] abrangem casos como dengue, cólera, febre maculosa, infecção pelo vírus da Imunosuficiência Humana (HIV), e, ainda, a violência contra a mulher, incluindo tanto os casos que acontecem no ambiente público, como no doméstico.

Isto porque a Organização Mundial de Saúde reconhece a violência contra a mulher como uma questão de saúde pública, que afeta mais de 1/3 de todas as mulheres do mundo, apresentando proporções endêmicas, com repercussões muito maiores que o próprio dano imediato causado pela ação da violência.

Além da já tão conhecida e alarmante taxa brasileira de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres – que nos coloca na 5ª posição internacional entre 83 países do mundo[3] -, a OMS considera que as mulheres que sobrevivem e estão expostas às mais variadas formas de violência de um parceiro íntimo estão mais sujeitas a ter depressão, problemas com álcool, gravidez indesejada, bebê com baixo peso ao nascer, ou mesmo de contrair HIV ou adquirir infecções sexualmente transmissíveis, como sífilis ou gonorreia. Ainda, 42% das mulheres que sofreram violência física ou sexual nas mãos de um parceiro tiveram lesões como resultado[4].

É uma realidade que, ao lado de agravos – como dores crônicas, hematomas e feridas, estresse, insônia, distúrbios alimentares ou até mesmo tentativas de suicídio e problemas de locomoção e mobilidade como decorrência da violência sofrida –, impacta os serviços de cuidados em saúde de todas as ordens, notadamente aqueles em saúde sexual, reprodutiva e mental, demandando inclusive os serviços emergenciais que contemplam o atendimento da Saúde de um modo geral[5].

Estes dados revelam – e comprovam – que o enfrentamento da violência contra a mulher está muito além de ações policialescas, das que visam e reclamam o acionamento automático do sistema de Justiça criminal no afã, único e exclusivo, de obter a resposta repressiva do Estado. Resposta esta, inclusive, nem sempre à altura das expectativas, haja vista que o sistema criminal, em regra, não está apto a garantir prisões, quiçá de longo prazo, a plena conscientização do agressor quanto à sua responsabilidade pela violência, ou mesmo o de aplacar os efeitos que a violência doméstica causa não só à mulher, mas também aos chamados “filhos da violência” – as crianças e adolescente expostas à violência dentro deste triste cenário.

Inúmeros estudos, dentre eles um realizado em Portugal, indicou que os filhos de mulheres em situação de violência apresentaram agravos de saúde duas vezes mais do que os filhos inseridos em lares não violentos[6]. Ainda, apresentaram riscos aumentados de também sofrerem violência física e sexual além da psicológica decorrente da simples exposição[7], a ensejar os cuidados especializados de assistência integral e protetiva previstos na Lei 13.431/2017.

E tudo isso sem contar da necessária adoção de outras medidas com o intuito de garantir que a própria sociedade enxergue que este tipo de violência encontra raízes estruturais na desigualdade de gênero, raça e etnia.

Justamente em razão destas considerações, mas sem desprezar a função tão necessária do Direito Penal, que a noção de enfrentamento da violência contra a mulher engloba papeis não apenas dúplices, como o de prover assistência à vítima e repreender a criminalidade, mas quádruplos, como o de também prevenir a violência e proteger a mulher.

Neste sentido, obrigar que profissionais de saúde não só notifiquem a violência contra a mulher, mas também que a notifiquem à polícia em 24 horas, pode ser contra a efetividade no combate a esse tipo de delito.

O atendimento em saúde na sua relação paciente-profissional está permeado pelo sigilo. É uma garantia à mulher que busca o atendimento de forma que sua história seja resguardada, como também ao próprio profissional, assegurando-o que possa prestar todas as ofertas em saúde necessárias ao caso. Este sigilo não é absoluto e a própria Lei 10.778/03, atrelada aos regramentos de ética profissional, pauta as suas exceções, sem prejuízo das já conhecidas ressalvas em relação as meninas e as mulheres idosas vítimas de violência, cujos instrumentos legais como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso impõem fluxos diferenciados voltados à rede protetiva.

A nova lei, porém, parece enrijecer este quadro, tornando a publicização do sigilo uma regra; e o que é mais preocupante, o de que esta publicização desfoque a necessária ação da rede protetiva e valorize tão somente a ação policial.

Por isso, ainda que a lei não tenha alterado diretamente a Lei Maria da Penha, ela pode impactar significativamente em sua efetividade, tornando mais complexos os fluxos e procedimentos dos serviços de saúde no que diz respeito ao atendimento das mulheres e meninas que se encontrem em situação de violência doméstica, além de conferir novos obstáculos a que elas procurem ajuda neste ambiente.

Se o silêncio, que chega a corresponder 27% dos casos e que costumeiramente tem demorado cerca de oito a dez anos para ser quebrado, é considerado um dos maiores entraves para que se inicie o processo de enfrentamento da violência a que as mulheres e meninas estão submetidas – muitas das quais já em sofrimento em razão da chamada Síndrome da Mulher Maltratada –, a nova proposta legislativa pode se traduzir em um verdadeiro amordaçamento.

Para essas e tantas outras mulheres, a notificação policial compulsória pode representar insuperável obstáculo aos recursos de saúde, isolando-as ainda mais das fontes de suporte e apoio. E o que é pior, colocando-as ainda mais em vulnerabilidade e garantindo ao agressor mais um instrumento de poder para prosseguir com seus atos, perpetuando e ampliando as ações violentas, além de intensificar o agravo do quadro de saúde das vítimas e o risco de feminicídio.

E isso, vale dizer, sem contar com os prováveis retrocessos a impedir ainda mais o satisfatório manejo da notificação compulsória em si mesma, como a falta de fluxos específicos claros ou regulamentos relacionados ao atendimento das mulheres e meninas nestas condições, a desarticulação entre os serviços da rede ou mesmo a insuficiente capacitação em gênero de profissionais ou a garantia de mecanismos à sua própria proteção, lembrando que muitos destes atuam em territórios vulneráveis e, assim, também expostos a riscos por parte dos agressores.

Espera-se, porém, que a interpretação na aplicação da referida lei atente para a realidade da violência doméstica e familiar contra a mulher brasileira, historicamente associada a algo privado, banal ou mesmo sob o manto da paixão ou do patológico.

Por muito tempo o valor da mulher se definiu pela sua castidade ou submissão; ou o valor da sua vida, pela honra do outro. Por muito escravizou – e escraviza – as mulheres que dependiam emocionalmente ou financeiramente do outro, ou mesmo porque assumir a condição de vítimas da violência as levava a uma posição em que elas eram consideradas culpadas. Elas eram conduzidas a um não lugar, notadamente as negras, desvalorizadas e subjugadas pela cor de sua pele. Ocorre que não apenas no passado, mas nos dias atuais ainda temos resquícios dessa triste realidade.

A evidente violação à dignidade humana das mulheres, a complacência e a impunidade exigiram do Brasil uma posição de Estado, impondo-se a adoção de posturas de efetiva transformação desta realidade. E não apenas o combate na sua visão estritamente policial, mas que promova a dignidade das vítimas.

Não foi à toa que a própria Lei Maria da Penha impôs ao Estado a adoção de uma política pública de enfrentamento integral, articulada e conjunta, baseada em diretrizes preventivas, assistenciais, protetivas e repressivas, envolvendo União, Estados, Distrito Federal e Municípios, integradas com o Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Púbica e as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação.

Neste sentido, e retomando o valoroso reconhecimento de que a Lei Maria da Penha foi considerada pela ONU a 3ª melhor do mundo no cenário legislativo do enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher, vale aqui um alento a todos – inclusive profissionais de saúde – preocupados com o novo diploma normativo.

A nosso ver, os fluxos a serem organizados em decorrência da iminente vigência da nova lei dependerão de sua plena coesão com o art. 4º, da Lei 11.340/06, ao dispor que, na sua interpretação, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Aos operadores do direito, incumbe lembrar que o Brasil é signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), amparadas no princípio de atenção integral à mulher, e que impõem ao Estado uma série de obrigações à adoção de medidas multidisciplinares, inclusive no que diz respeito a esfera dos cuidados médicos – proporcionando-lhe acesso a programas eficazes -, como a de agir com o devido zelo para prevenir a violência contra a mulher. Qualquer proposta, norma, diretriz ou determinação que impliquem em risco à manutenção do silêncio da mulher e à perpetuação da violência e aos agravos em saúde dela decorrentes, podem ser consideradas contrárias a este espírito.

Importa também ressaltar que um dos objetivos da Constituição de 1.988 é extinguir as desigualdades existentes entre homens e mulheres – em atenção ao princípio da isonomia (artigo 5°, I) – e afastar a proteção insuficiente de bens jurídicos. Nesse sentido, é possível sustentar a inconstitucionalidade material da Lei n° 13.931/19, visto que reduz as chances na garantia da integralidade do tratamento especial à mulher, além de afastar a imposição de que o Direito Processual Penal contemple meios e instrumentos jurídicos hábeis a tornar efetiva a tutela dos bens jurídicos resguardados pelo Direito Penal, promovendo-se a responsabilização criminal do agressor em momento oportuno e primando, no que tange à violência doméstica e familiar, pela segurança e integridade da vítima.

Em acréscimo, observa-se que a Lei 13.431/2017, conhecida como “Lei da Escuta Protegida”, garante direitos específicos à criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência, e expressamente define violência psicológica como a exposição à violência doméstica.

Similar e posterior à Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha -, cria obrigações para os sistemas de justiça e de segurança, mas também – e principalmente – para a saúde e assistência social, determinando articulação obrigatória inclusive com a educação para atendimento integral à criança e adolescente. Trata-se de legislação recente, baseada em diretrizes internacionais, e na qual, atendendo ao comando constitucional da proteção integral com prioridade absoluta, em nenhum momento prevê a obrigatoriedade da notificação criminal automática exatamente porque o atendimento protetivo não supre e não pode ficar atrelado e dependente da busca pela responsabilização do agente, sob pena de ser alijado da relevância que possui na promoção da saúde física e mental do ser humano, fortalecendo-o na busca pela liberdade e pela vida sem violência.

Em suma, para além de se tratar de caso de segurança e de saúde públicas, nunca podemos nos esquecer que a violência doméstica e familiar contra a mulher é considerada uma violação a direitos humanos.

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[1] Segundo o disposto no art. 6º, § 2º, da Lei 8080/90.

[2] Cf. Portaria de Consolidação das normas sobre os sistemas e subsistemas do SUS, n. 04, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde.

[3] WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. 1ª edição. Brasília – DF – 2015.

[4] “Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence”. World Health Organization, 2013, p 31.

[5] In “Estudio multipaís de la OMS sobre salud de la mujer y violencia doméstica contra la mujer – Primeros resultados sobre prevalencia, eventos relativos a la salud y respuestas de las mujeres a dicha violencia”. OMS, 2005.

[6] Em apenas um dos dados recolhidos, atestou que : 18,7 por cento das mulheres que não foram alvo de violência afirmaram ter tido filhos doentes no último ano; entre as que foram vítimas nos últimos 12 meses, essa percentagem sobe para praticamente o dobro – 35,5 por cento. Disponível em: https://www.publico.pt/destaque/jornal/filhos-de-mulheres-vitimas-de-violencia-adoecem-mais-208160

[7] Em relação às crianças e adolescentes, reportando-se a estudos feitos no mundo todo, documento da UNICEF[7] atesta o vínculo comum entre violência doméstica e maus tratos contra crianças e adolescentes, com 40 por cento dos casos de maus tratos relacionados a violência doméstica no lar. Na mesma linha, um estudo norteamerciando atestou que crianças expostas à violência doméstica são 15 vezes mais propensas a sofrer agressão física e / ou sexual do que a média nacional.

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