As formas de agressão seguem passos similares em diferentes nacionalidades. Na minha volta ao mundo em mais de 80 dias, fiz um mergulho em culturas diferentes, mas vivenciei realidades inacreditavelmente parecidas
(Celina/Globo.com, 11/02/2020 – acesse no site de origem)
O ano de 2020 chegou intenso, e o fôlego para a batalha, muitas vezes solitária, precisa ser redobrado. Tomei como missão em 2019 viajar pelo mundo para falar sobre os direitos da mulher e a violência doméstica. Não me canso, e este ano farei tudo de novo. Levo comigo nessas viagens a minha história, a minha escuta e algumas palavras encorajadoras. Senti que isso foi a chave para abrir portas emperradas e com fechaduras difíceis de serem destravadas. Era assim que eu percebia em plateias tão numerosas alguns rostos angustiados pelo silêncio. Percebi que, muito mais do que falar, eu estava lá para ouvir.
As formas de agressão seguem passos similares em diferentes nacionalidades. Na minha volta ao mundo em mais de 80 dias, passei pelos Estados Unidos, pela Ásia e pela Europa. Além disso, viajei por vários estados brasileiros. Fiz um mergulho em culturas diferentes, mas vivenciei realidades inacreditavelmente parecidas.
Falei para comunidades brasileiras em alguns estados americanos como Nova York, Texas, Flórida e Arizona. Visitei cidades no Japão, onde a comunidade brasileira também é forte. Também estive em Paris, Londres e Milão, falando e ouvindo sobre o mesmo tema. Me emocionei com a capacidade de mobilização dos grupos de mulheres. Agradeço por minha história ter sido capaz de encorajar outras mulheres a quebrar o silêncio e expor as suas dores.
Essa troca é muito importante. Não é simples para a maioria das mulheres vítimas de violência trazer à tona experiências dolorosas, antigas e quase sempre crônicas.
De Hamamatsu, no Japão, ao Arizona, nos Estados Unidos, de Pernambuco ao Mato Grosso do Sul — minha terra —, constatei de perto que a violência contra a mulher é de fato uma epidemia mundial. Guardei essa percepção: impressionante como todos os estágios de agressões contra as mulheres estão presentes em culturas tão distintas. Meu contato no exterior aconteceu a partir das comunidades brasileiras nessas regiões do mundo. Mas também pude entender melhor essa realidade tão complexa conversando com autoridades locais e em contato com americanos, europeus e japoneses.
Uma das experiências mais fortes aconteceu em Nova York, em um evento organizado pelo Consulado Brasileiro, logo no início da minha jornada. Após uma troca espetacular com uma plateia de 100 mulheres. Tive um retorno surpreendente. Após a conversa, o Consulado informou que havia recebido 20 denúncias de mulheres brasileiras lá residentes e vítimas de agressões domésticas. Ou seja, depois de ouvir e falar, 20% das mulheres presentes se mobilizaram e tiveram coragem de mudar.
Comecei a perceber que o segredo para abrir portas tão trancadas tem como base o diálogo e a empatia. Não haveria um resultado eficaz se eu não estivesse movida por uma escuta atenta, efetiva e afetiva. A coragem para promover a mudança na vida de mulheres que sofrem com a violência doméstica se estrutura a partir desse movimento de mão dupla. Falar e ouvir. Ouvir e falar. Sempre.
Isso cabe também no diálogo com os homens. Me refiro aos que jamais cometerão esse crime, porque estarão sempre conosco para nos apoiar e respeitar. Mas também aos que cometeram agressões e que, mesmo depois de terem sido judicialmente punidos por isso, estão dispostos a mudar.
No Japão, por exemplo, alguns homens admitiram que não sabiam que estavam cometendo violência contra suas mulheres em determinado momento da convivência, quando as agrediam verbalmente, desestimulavam-nas em seus projetos, reclamavam da comida, falavam palavras de baixo calão. Achei esse reconhecimento público importante.
Artigo:’Lembrei dos olhares adultos mas impotentes diante de uma menina de rosto e mente deformados’, diz professora em relato a alunos sobre violência sofrida na infância
Em Nova Jersey, testemunhei uma mulher se levantar e dizer que falaria sobre aquele tema em público pela primeira vez. Era uma mulher forte, empreendedora, respeitada na comunidade brasileira. Ela sofria com isso há 20 anos, sem contar a ninguém o que se passava dentro de casa. Tinha vergonha de se expor. Mas, naquele dia, diante de uma multidão, ela se encorajou. Foi uma comoção. Mulheres que estavam ao seu lado choraram e se abraçaram. Vi muita compaixão. Quando ela fez o desabafo, várias outras repetiram o gesto e também deram depoimentos fortes.
Fora do país, a situação se agrava pela falta de informação e orientação para as mulheres das comunidade brasileiras. Elas temem denunciar, porque muitas vezes não estão em situação regular nos respectivos países. Acreditam que serão deportadas se formalizarem uma denúncia. Muitas delas são casadas não necessariamente com brasileiros, mas com americanos, japoneses, franceses, ingleses igualmente agressores.
Infelizmente, neste balanço do ano que passou, eu não tive uma conclusão positiva. Me desdobrei para ouvir tantas histórias e levar palavras de apoio, mas, infelizmente, eu não vejo boas perspectivas. Muitas vezes, me sinto como um passarinho voando sozinho, como também algumas bravas parceiras que também não se cansam.
Há muito a ser feito e tudo caminha a passos lentos. Não há uma política global forte e efetiva de combate a violência doméstica, ainda que algumas experiências se mostrem bem-sucedidas. Esperamos que outras incansáveis ativistas se multipliquem mundo afora em defesa dos nossos direitos. E que se multiplique a coragem para mudar.