A entrada em vigor nesta terça-feira (10) em todo país da lei federal que estabelece prazo de 24 horas para as redes de saúde – pública e privada – comuniquem a polícia sobre os casos em que houver indício ou confirmação de violência contra a mulher gera discussão entre os profissionais de saúde de São Paulo.
Pela lei, os médicos teriam que entregar o nome da vítima para a polícia, o que fere o sigilo médico segundo a Associação de Obstetrícia e Ginecologia de São Paulo (Sogesp). Os profissionais de saúde alegam também que até o momento os órgãos públicos não estabeleceram um formulário ou fluxo padrão de notificação dos casos, muito menos um órgão que vai centralizar essas notificações.
Por causa das incertezas, a classe médica acredita que a lei não tem condições de ser cumprida enquanto não houver uma regulamentação no estado.
“A forma dessa notificação não foi normatizada pela lei, então o médico está numa situação complicada. Eles devem cobrar dos diretores técnicos dos hospitais a criação de meios para que essa notificação seja feita adequadamente”, afirma Maria Rita Souza Mesquita, diretora da Sogesp.
A Sogesp também afirma que a lei deve ter impacto na relação entre médicos e pacientes, já que o sigilo médico deixa a vítima de agressão mais segura em declarar aos profissionais de saúde o crime pelo qual foi vítima.
“A mulher pode se sentir mais exposta e vulnerável. Com o sigilo médico, ela se sente mais à vontade e mais livre para relatar os fatos ao médico como eles realmente aconteceram”, diz a diretora da Sogesp.
Uma lei de 2003 já obrigava o médico a notificar os órgãos competentes sobre as mulheres vítimas de violência, mas previa que casos como esses fossem notificados apenas para fins estatísticos, sem identificar a vítima. A nova lei federal aprovada pelo Congresso no ano passado mudou esse entendimento e tem sido vista com preocupação pelas organizações que lutam pelos direitos das mulheres.
“A preocupação é dessa mulher ter medo de ir a um serviço de saúde receber um atendimento tão necessário naquele momento, com medo de que o serviço faça uma denúncia. A gente tem receio também de que muitas vezes o agressor impeça a mulher de ir ao serviço de saúde receber o atendimento porque sabe que lá ele possa ser denunciado para a polícia”, explica Sônia Coelho, assistente social da Sempreviva Organização Feminista (SOF).
Histórico
A lei federal que obriga a notificação compulsória à polícia dos casos de violência contra mulheres atendidas nos sistemas de saúde em até 24 horas foi aprovada pelo Congresso Nacional em setembro de 2019, com o objetivo de reduzir a subnotificação dos casos de violência contra as mulheres no país.
Porém, a proposta foi vetada pelo presidente Jair Bolsonaro em outubro, por contrariar o interesse público. Em mensagem enviada ao Senado Federal informando o veto, o presidente alegou que a proposta deixaria a vítima mais vulnerável diante do agressor, o que não traria benefícios para a estatísticas de violência contra a mulher.
“A proposta contraria o interesse público ao determinar a identificação da vítima, mesmo sem o seu consentimento e ainda que não haja risco de morte, mediante notificação compulsória para fora do sistema de saúde, o que vulnerabiliza ainda mais a mulher”, justificou o presidente.
No entanto, o veto presidencial foi derrubado pelos parlamentares no fim de novembro, obrigando o Executivo a promulgar a lei, que entrou em vigor nesta terça-feira (10) ainda sem regulamentação.
Órgãos públicos
Por meio de nota, a Secretaria Estadual de Saúde disse que tenta fechar um termo de cooperação com a Secretaria de Segurança Pública (SSP) para criar um fluxo de notificação desses crimes, que serão investigados pelas delegacias regionais e também as delegacias da mulher em todo o estado.
A Secretaria Municipal de Saúde, por sua vez, afirmou que já faz a notificação de casos de violência contra a mulher para a vigilância epidemiológica para fins estatísticos e que a vítima é orientada a procurar a delegacia mais próxima quando deixa o hospital.
O órgão municipal também informou que ainda avalia com a SSP e com o Ministério da Saúde a definição de um fluxo para comunicar esse tipo de violência para as autoridades policiais.
Já o Ministério da Saúde disse que está trabalhando na regulamentação dessa lei.