A epidemia de feminicídio no Brasil não deve ser ignorada em meio à pandemia do coronavírus
(Folha de S.Paulo, 27/03/2020 – acesse no site de origem)
O Brasil é um dos países mais violentos para mulheres. Segundo o Ministério da Saúde, a cada quatro minutos uma mulher é agredida por um homem em ambiente doméstico. E em 2019, sob o atual governo, foi registrado um crescimento de 7,3% dos casos de feminicídio se comparado ao ano de 2018, com explosão dos números em alguns estados, segundo dados do Núcleo de Violência da Universidade de São Paulo. Ainda segundo o estudo, 1.314 mulheres são mortas por serem mulheres, média de uma mulher a cada sete horas.
Em um cenário de pandemia, como a causada pela Covid-19, a epidemia de feminicídio fica ainda mais grave. Um governo preocupado com a saúde física e mental das mulheres e de todas as pessoas vulneráveis que estão no seu entorno, como crianças e idosos, saberia que uma das previsíveis consequências do isolamento e imposição do convívio no lar seriam o aumento da violência doméstica e do abuso sexual infantil.
Sabemos que não é o caso, temos uma pessoa completamente irresponsável no cargo, cercada por muitas outras tão irresponsáveis quanto. Por isso, é preciso responsabilidade
da sociedade civil e que governos estaduais estejam atentos ao problema e tomem medidas para combater tais questões.
Mundo em isolamento devido ao coronavírus
Segundo algumas reportagens, o plantão judiciário do Rio de Janeiro registrou um aumento de 50% nos casos de violência doméstica no estado nos últimos dias de quarentena, um número que já era muito alto antes das medidas de isolamento. Segundo o apurado, as mulheres vítimas de agressão em casa representam cerca de 70% da demanda do plantão.
Na China, dobraram os casos de violência contra mulheres e meninas durante o isolamento, como foi registrado aumento no número de divórcios, para ficarmos em alguns exemplos.
Mas por ser situação nova no ambiente social, diferentes consequências são manifestadas. Em Santa Catarina, por exemplo, houve uma redução de 65% no número de denúncias no primeiro fim de semana de quarentena.
Lendo um artigo de Tanya Selvaratnam, no jornal The New York Times, soube que nos Estados Unidos, na linha direta nacional de denúncia de violência doméstica, houve diminuição nas ligações. Segundo a responsável pela linha, não é que as agressões e abusos estariam ocorrendo menos, mas há um cenário em que é mais difícil para a vítima denunciar.
Se em condições normais já há um alto número de subnotificação, sobretudo se formos pensar em abuso sexual infantil, some-se a isso o fato de que, nas atuais condições, para a mulher acionar o sistema de proteção em casa, ela tem o tempo todo a companhia do homem sob o mesmo teto. E, se tiver de sair, terá de romper com o isolamento, expondo-se à doença e com menos acesso a serviços públicos. Não precisa muito para imaginar o drama atual vivido em muitos lares brasileiros.
O Brasil também é campeão em abuso infantil, como já tratei em outras colunas. Crianças, sobretudo meninas, são alvos de inúmeros homens, sendo a maioria do seio familiar.
Onde está uma campanha de conscientização do governo? Uma governante, que não sabe o que fala, diz que para evitar a gravidez precoce bastaria a jovem não manter relações sexuais, ignorando que na maioria das vezes estamos diante de uma relação de poder, de abuso, de fragilidade material. Na falta de gente qualificada de técnica e humanidade nas instâncias competentes, precisamos contar com o apoio da sociedade civil e de servidores públicos distanciados da linha de governo que está compromissada com o atraso.
A situação é grave e merece todo o cuidado. Segundo o Unicef, casos de epidemias e surtos de doença podem contribuir para ciclos de violência contra jovens, e uma rede de proteção precisa se erguer contra isso.
Na rede de proteção à mulher e à criança, busque divulgar canais de denúncia —que devem ser ampliados para serem acessados via WhatsApp—, assim como de redes de serviços e apoios a situações de violência.
Se você é gestor público, busque o treinamento de equipe de saúde, educação e serviços, que são essenciais nesse momento em que tanta gente vulnerabilizada convive sob o mesmo teto com o agressor. Quem tem condições e acesso para agir e sabe da importância de impedir a propagação do vírus para proteger a vida de milhões e ao mesmo tempo busca atuar pela vida, saúde e bem-estar de crianças, mulheres e idosos encarcerados deve atentar para esse grave problema nos lares.
Temo que muitas vezes se tratará de um trabalho solitário, visto que o poder público federal está a serviço do sistema financeiro, mais preocupado com a cor da roupa que as crianças vestem do que em arregaçar as mangas para trabalhar no que vivemos atualmente: uma crise de saúde e humanitária.
Djamila Ribeiro
Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.