Avaliação abria espaço para a cura gay, hoje proibida pelo Conselho Federal de Psicologia mas ainda praticada
(Folha de S.Paulo, 16/05/2020 – acesse no site de origem)
“Diziam que o diabo botava isso na gente”. “A psicóloga perguntou se eu havia sido estuprado na minha infância”. “Ouvi que era coisa de pai muito ausente”.
Os relatos integram o livro “Tentativas de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs”, lançado em 2019 pelo Conselho Federal de Psicologia. A obra ouviu 32 pessoas apontadas como doentes e obrigadas pela família a passar por “sessões de cura” em consultórios e comunidades terapêuticas para deixarem de ser lésbicas, gays, bissexuais, trans, travestis e intersexo.
Neste domingo (17), faz 30 anos que a OMS (Organização Mundial da Saúde) retirou o homossexualismo (o sufixo “ismo” refere-se a doença na medicina) da 10ª edição da CID, sigla em inglês para Classificação Estatística Internacional de Doenças.
Antes da mudança, a homossexualidade (o sufixo “dade” significa comportamento) estava no mesmo patamar de transtornos como a pedofilia. Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria já havia banido a homossexualidade de sua lista de distúrbios. No Brasil, a mesma medida foi tomada antes da chancela da OMS pelo Conselho Federal de Medicina em 1985 após pressão do Grupo Gay da Bahia, conta o fundador da ONG, Luiz Mott. “Fizemos um abaixo assinado, que recolheu 16 mil assinaturas, entre elas, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, numa época em que só havia fax.” O 17 de maio virou o Dia Internacional Contra a Homofobia e a Transfobia
A antropóloga Regina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, explica que a OMS despatologizou a homossexualidade, mas deixou um resíduo. “Ficou em aberto a possibilidade de as pessoas que não se sentirem confortáveis com sua homossexualidade procurarem tratamento.”
Para a OMS, essas pessoas tinham orientação sexual egodistônica. No ano passado, a entidade tirou da egodistonia o status de transtorno psíquico na 11ª versão da CID, que passa a valer em janeiro de 2022. No novo catálogo, a transexualidade também deixou de ser considerada uma doença.
Desde 1999, os psicólogos brasileiros são obrigados a cumprir a resolução 001 do Conselho Federal da categoria, que proíbe terapias de reversão sexual em pessoas LGBTIs. Para a entidade, não é possível curar uma doença que não existe.
Mas, por causa da brecha deixada pela OMS, psicólogos cristãos conseguiram nos tribunais aval para fornecer a chamada “cura gay”. O “Movimento Psicólogos em Ação” obteve na Justiça Federal do Distrito Federal uma liminar em setembro de 2017 e uma sentença favorável três meses depois expedida pelo juiz Waldemar de Carvalho. A decisão do magistrado provocou uma série de protestos pelo país na época.
No seu despacho, Carvalho negou cassar a resolução 001, como pretendia o movimento, mas entendeu que não poderia deixar “desamparados os psicólogos que se dispunham a estudar e aplicar suas técnicas àqueles que procurarem suporte no enfrentamento de seus mais profundos sofrimentos relacionado à orientação sexual egodistônica”.
Psicólogos do movimento também se alinharam a políticos evangélicos para tentar implantar a medida por meio da aprovação de projetos de lei. De ao menos cinco iniciativas apresentadas na Câmara Federal, entre 2005 e 2016, uma ainda está em tramitação e as demais foram arquivadas.
A figura mais conhecida do “Psicólogos em Ação” é Rosangela Justino. Evangélica e bolsonarista, ganhou apoio da nora do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), também psicóloga, quando integrou chapa na disputa pelo comando do Conselho Federal de Psicologia no ano passado. Mas seu grupo acabou na lanterna dos endossos, com apenas 12% dos votos alcançados pela chapa vitoriosa.
A reportagem procurou o “Psicólogos em Ação”, com pouco mais de 5.600 seguidores nas redes sociais; e Justino, mas eles não responderam aos pedidos de entrevista. Em 2009, após ter sido punida por fornecer terapia de reorientação sexual, Justino afirmou à Folha se sentir perseguida por conselhos de psicologia afoitos para “implantar a ditadura gay” no país.
A “cura gay” foi um serviço legalmente fornecido no Brasil de setembro de 2017 a abril de 2019 até que a ministra Cármen Lúcia, do STF, barrou a prática por meio de liminar que atendeu a um pedido do Conselho Federal de Psicologia. Em janeiro deste ano, a ministra suspendeu a tramitação da ação popular movida pelos psicólogos cristãos.
Para Pedro Paulo Bicalho, presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, o desconforto sentido por uma pessoa LGBTI não é um problema dela, mas social. “Essa sensação de rejeição [egodistonia] em relação à própria sexualidade é o efeito mais direto que uma pessoa não heterossexual vive na sociedade LGBTfóbica brasileira”, diz. “Cabe a nós, psicólogos, tratar a dor causada por isso, mas nunca dizer que ela poderá deixar de ser LGBTI”.
Cris Serra, que pesquisa religião e sexualidade na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), vê na pressão de mercado um dos pilares de fomento da “cura gay”.“As comunidades terapêuticas fazem, na clandestinidade, esses atendimentos”, diz.
Inspeções do Conselho Federal de Psicologia realizadas em 2011 e 2018 em clínicas autorizadas a apenas tratar pessoas com dependência química localizaram LGBTIs sem vícios sendo submetidos a processos de reorientação sexual.
O antropólogo Alexandre Oviedo, que analisou controvérsias no discurso da “cura gay” promovida por 19 organizações que trabalham em igrejas, diz que elas “buscam colocar um verniz científico nos seus discursos e ligar a homossexualidade a abusos na infância ou família desestruturada.”
Para o advogado e ativista Renan Quinalha, da Unifesp, o movimento LGBTI tem, entre muitos desafios, a necessidade de mais uma vez se reinventar no momento em que falta espaço institucional para a causa. “É impossível dialogar com a ministra Damares Alves”, diz.
A Folha questionou o Ministério da Família e dos Direitos Humanos sobre quais ações tem tomado para assegurar e ampliar os direitos LGBTIs no Brasil, mas a pasta não se manifestou.
DESAFIOS E CONQUISTAS DOS LGBTIS
A partir dos anos 1950
Surgem as divas trans que se tornam grandes estrelas no Brasil e na Europa,
como Rogéria, Jane di Castro, Eloína e Fujika, entre outras
1969
LGBTs de Nova York colocam fim às agressões que sofriam em batidas policiais realizadas num bar da cidade, o Stonewall Inn. O grupo resistiu por três dias em 1969, numa época em que se relacionar com pessoas do mesmo sexo era ilegal em todos os estados americanos. O movimento estimulou uma marcha sem volta de LGBTs por mais igualdade de direitos em várias partes do mundo e ficou conhecido como a revolta de Stonewall
1978
Início do movimento pelos direitos LGBT no Brasil. É fundado, no Rio de Janeiro, o jornal Lampião na Esquina, voltado para as questões da comunidade. Em São Paulo, surge o Somos
1982
Ocorre a famosa passeata contra o delegado José Wilson Richetti, que realizava batidas policiais no centro de São Paulo contra travestis, gays e prostitutas sobre o pretexto de moralização social
1983
Em 19 de agosto de 1983, um protesto realizado por lésbicas e apoiado por grupos feministas pôs fim às discriminações sofridas no Ferro’s Bar, centro de SP. O ato ficou conhecido como o “Stonewall brasileiro”
Anos 1980 e 1990
Anos de pânico: o HIV chega ao Brasil e faz estrago conhecido como “peste gay”. Na Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo é organizado o primeiro núcleo de luta anti-Aids. Morrem Darcy Penteado, Caio Fernando Abreu e Cazuza por complicações da doença
1985
O Conselho Federal de Medicina retira a homossexualidade de sua lista de doenças
1990
OMS (Organização Mundial da Saúde) retira a homossexualidade de sua lista de transtornos mentais
1992
No Piauí, Kátia Tapeti é eleita a primeira vereadora trans na história da política brasileira
1995
As primeiras Paradas do Orgulho LGBT são realizadas em Curitiba e no Rio
1997
A cidade de São Paulo sedia sua primeira Parada LGBT. Em 2006, a passeata paulistana entra para o Guinness Book como o maior evento do gênero
2001
O governo de São Paulo promulga a lei 10.948 que penaliza práticas discriminatórias em razão da orientação sexual e identidade de gênero
2002
O processo de redesignação sexual, a chamada cirurgia de “mudança de sexo” do fenótipo masculino para o feminino é autorizada pelo Conselho Federal de Medicina. Em 2008, passa a ser oferecida pelo SUS (Sistema Único de Saúde)
2011
STF (Supremo Tribunal Federal) reconhece a união homoafetiva, um marco na luta pelos direitos LGBT
2018
STF decide que transexuais e transgêneros podem mudar seus nomes de registro civil sem necessidade de cirurgia
2019
STF enquadra a homofobia e a transfobia na lei de crimes de racismo até que o Congresso crie legislação própria sobre o tema
2020
STF declara inconstitucionais as normas que proíbem gays de doar sangue
Por Dhiego Maia