(CLAM) Nos últimos anos, ocorreram reduções nas desigualdades raciais em alguns indicadores do mercado de trabalho, como, por exemplo, o rendimento médio do trabalho. Porém, apesar desta queda, os abismos nos indicadores das pessoas brancas e pretas/pardas permanecem muito elevados. Este panorama é atestado pelo boletim “Tempo em Curso”, elaborado pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser/UFRJ).
Os dados do boletim (clique aqui para acessar) mostram o já conhecido abismo de  rendimento que separa os homens brancos dos negros. E explicita que, além da cor  da pele, a distância de rendimento expressa também uma dimensão de gênero:  mulheres brancas e negras (pretas e pardas) estão separadas por centenas de  reais em termos de rendimento (R$1.638 para as primeiras; R$ 906 para as  segundas – números registrados em setembro de 2011). A taxa de desemprego,  avaliada em cima das seis maiores regiões metropolitanas do país, também indica  um cenário pior para as mulheres pretas e pardas, cujo desemprego foi de 9,3% em  setembro de 2011, ante 6,2% para as brancas.
 
O boletim compilou também dados entre 2009 e 2010 que falam sobre a violência  contra as mulheres, incluindo sua desagregação de cor ou raça. Esta análise  compõe a segunda parte do boletim. As notificações de violência contra mulheres  foram feitas segundo os grupos de cor ou raça, a partir dos dados do Sistema de  Informação de Agravos de Notificação (SINAN/Ministério da Saúde). Os números  apontam 66.350 casos de violência contra mulheres entre 2009 e 2010: 27.676  tendo as brancas como vítimas e 23.698 tendo as negras como agredidas. Houve  14.176 denúncias cuja declaração de cor não foi registrada.
 
O economista, sociólogo e coordenador geral do Laeser, Marcelo Paixão, afirma  em entrevista ao CLAM como funciona a dinâmica de gênero que marca as  desigualdades salariais e reflete sobre os números de violência contra  mulheres.
 
Os dados mostram que as assimetrias de renda não se limitam à divisão homem e mulher. Dentro da população feminina, a diferença de renda entre trabalhadoras brancas e negras/pardas é de 80,7%. O que esses números dizem sobre a relação entre aspectos raciais e de gênero no mercado de trabalho?
O rendimento médio do trabalho das pessoas pretas e pardas é sempre inferior  comparado ao dos grupos de pessoas de cor ou raça branca e amarela. O desemprego  também é uma variável cronicamente desfavorável aos negros.
 
O fator educacional pode ser mobilizado para explicar estas diferenças, tendo  em vista a menor escolaridade média dos negros em relação aos brancos. Mas não  podemos explicar isso apenas pela educação. O próprio mercado de trabalho  apresenta uma dinâmica que além de remunerar desigualmente pessoas negras e  brancas que ocupam postos parecidos, discrimina as pessoas de pele escura quando  da oferta de oportunidades ocupacionais melhor recompensadas financeiramente e  de maior prestígio social. Tal realidade por sua vez gera um efeito de muito  difícil mensuração, mas que se coloca evidente, qual seja: o fato de existirem  poucas pessoas negras nos postos de trabalho de melhor posição reforça a baixa  escolaridade deste grupo pela via do rebaixamento da auto-estima. Isso forma um  círculo vicioso que alimenta a perpetuação das assimetrias sociais e raciais no  país.
 
Quando associamos o debate acima com a da questão de gênero, o que ocorre é o  que chamamos de preconceito e discriminação agravados, que une sexo e cor de  pele. Os números oficiais que falam do modo pelo qual o mercado de trabalho  brasileiro trata as mulheres negras mostram que as relações raciais e de gênero  permeiam nosso mercado de trabalho, penalizando aqueles indivíduos que carregam  características desvalorizadas socialmente. Seus patamares de remuneração são  invariavelmente inferiores aos dos demais grupos, incluindo as mulheres brancas  e os homens negros – grupo ao qual em comparação tem até maior escolaridade. Sua  taxa de desemprego e informalidade é também invariavelmente maior que a dos  demais grupos. Ou seja, a discriminação por cor e gênero torna mais vulnerável a  população feminina e negra.
 
A sociedade brasileira é atravessada por questões de gênero, raça, classe  social, entre tantas outras variáveis. E o mercado de trabalho espelha essa  dinâmica de desigualdade.
 
O rendimento médio das mulheres pretas e pardas subiu de R$889,83, em setembro de 2010, para R$ 906,69, em setembro deste ano. O rendimento das mulheres brancas ficou praticamente estável (de R$1.640 a R$ 1.638). Podemos falar em um processo contínuo de redução da distância entre essas mulheres? Ou é um dado pontual?
Ao longo dos últimos anos o mercado de trabalho brasileiro caminhou no  sentido da redução das desigualdades sociais e raciais. De um lado o controle da  inflação permitiu a preservação do poder de compra dos salários e remuneração do  trabalho dos trabalhadores mais pobres. Por outro lado, ocorreu uma política de  valorização do salário mínimo, após aumentos reais sucessivos estipulados pelo  governo federal. Atualmente salário mínimo brasileiro superou os U$ 200, algo  inconcebível há dez anos atrás. Isso repercute no setor formal e no informal,  que se referencia no piso salarial. No mesmo rumo, tal movimento contribuiu para  a redução das assimetrias.
 
Porém, é preciso perceber que tal movimento também espelha fenômenos não  necessariamente positivos ocorridos nos últimos anos. Desde 1995, com a  instituição do plano real, nossa economia ficou mais exposta à competição  estrangeira, problema que se agravou não somente pela abertura comercial, mas  também pela política de juros elevados e a valorização cambial. Com isso os  escalões superiores das ocupações profissionais perceberam ou uma estagnação ou  mesmo queda nos seus rendimentos. Este grupo é usualmente formado por pessoas  brancas, especialmente do gênero masculino. Por um lado, não haveria motivos  para se lamentar este movimento. Mas, por outro, talvez o ideal fosse que as  desigualdades sociais e raciais se encurtassem num contexto de aumento geral dos  patamares de remuneração da população trabalhadora, inclusive de seus escalões  melhor remunerados.
 
De qualquer maneira, com a reestruturação econômica recente, o leque salarial  encolheu, favorecendo a redução das desigualdades raciais, inclusive quando se  analisa especificamente a população do sexo feminino desagregada pelos grupos de  cor ou raça.
 
Finalmente, cabe mencionar que se o rendimento dos postos mais altos encolheu  e o dos escalões mais humildes subiu, a forma de acesso ao mercado de trabalho  por parte dos diferentes grupos de cor ou raça fundamentalmente não mudou. A  população branca era 80% dos empregadores nos anos 1990, percentual que se  mantém atualmente. Os homens negros e as mulheres negras, respectivamente,  costumam responder por cerca de 65% – 70% dos empregos na construção civil e  doméstica, isso tanto antes como depois das transformações ocorridas em nosso  mercado de trabalho.
 
Sinteticamente, portanto, pode-se dizer que houve uma mudança nos patamares  de rendimento dos grupos de cor ou raça, mas sem mudar essencialmente o modo  pelo qual os distintos contingentes chegam ao mercado de trabalho. Assim, segue  existindo maior probabilidade de uma pessoa de pele clara ter acesso aos postos  mais prestigiados, o contrário ocorrendo com as pessoas de pele escura.
 
Entre 2009 e 2010, foram registradas 66.350 denúncias de violência contra mulheres, das quais 27.676 contra brancas e 23.698 contra pretas e pardas. A que podemos atribuir essa diferença de denúncias?
Em primeiro lugar, acho importante destacar que o Ministério da Saúde tenha  passado a coletar estes dados. Incorporar os dados da violência contra a mulher  dentro do SINAN, pois além de dar visibilidade ao tema, é, igualmente, um  reconhecimento de que o problema não é uma questão meramente policial, é também  um problema social gravíssimo, uma questão de saúde pública.
 
A superioridade das denúncias de mulheres brancas deve abrigar duas  observações preliminares. A primeira é que, pelos dados do SINAN, há 14.176  casos de violência contra a mulher sem o registro da cor da pele da vítima, o  que diante do estudo dos impactos deste fenômeno sobre os grupos de cor ou raça  corresponde a uma significativa subnotificação. Ou seja, esta lacuna prejudica  uma análise mais profunda do fenômeno da violência de gênero sobre os grupos de  cor ou raça.
 
Apesar de os números não serem auto-evidentes, uma segunda hipótese que  podemos inferir é que as mulheres brancas, pelo maior nível de formação,  melhores condições socioeconômicas e maior auto-estima, se sentiriam mais  seguras de seus direitos e denunciariam com mais facilidade as violências  sofridas às autoridades da área da saúde. As negras, diante da desvalorização  social crônica a que são submetidas, poderiam ter hipoteticamente maiores  dificuldade na hora de reclamar e defender seus direitos por não se sentirem  seguras para tanto. Os dados não dizem isso, mas dialogam com nossa realidade  social tornando a hipótese plausível. Assim, os dados da violência que incidem  contra as mulheres negras poderiam estar ainda mais subestimados.
 
Um dado que chama a atenção é a maior incidência de violências sexuais contra as mulheres negras (45% contra 40%). O estupro, por exemplo, registrou o índice de 48,6% para negras contra 38,8 para brancas. A que fatores podemos atribuir essa realidade?
É difícil responder precisamente a esta pergunta na falta de dados  complementares, muito embora não seja nada implausível associar tais diferenças  ao padrão brasileiro de relações raciais e à forma pela qual as mulheres negras  são usualmente tratadas em nossa sociedade. O fato das mulheres viverem em  ambientes socioeconomicamente mais precários e pobres deve influenciar esses  números. Mas a cor da pele é em si um fator que aumenta a exposição à violência,  especialmente a sexual, situação na qual se soma o desrespeito com a falta de  consideração para com a dignidade humana. O que os números do SINAN sugerem é  que o racismo atua como um mecanismo que potencializa a vulnerabilidade das  mulheres negras para este tipo de situação.
 
Que tipos de ações, leis e políticas públicas podem ser criadas ou melhoradas para combater essas desigualdades no âmbito trabalhista e da violência?
O enfrentamento das desigualdades no mercado de trabalho envolve desde o  investimento na educação, para proporcionar uma formação técnica e profissional,  até políticas de ação afirmativa no setor público e privado. A redução das  desigualdades raciais precisa ser vista como um objeto a ser perseguido pelo  Estado e por toda sociedade. Infelizmente, isso não acontece no mercado de  trabalho e demais espaços da vida social, contribuindo para que as posições  desvantajosas das pessoas negras na sociedade brasileira se prorroguem  indefinidamente.
 
A questão da violência contra a mulher é mais complexa. Não é apenas uma  questão econômica ou de prestígio social. O agente violador dos direitos da  mulher pode ser encontrado em todas as classes sociais e grupos de cor ou raça.  O racismo à brasileira impulsiona este tipo de prática, tornando as mulheres  negras especialmente vulneráveis, especialmente no plano da violência  sexual.
 
Precisamos, primeiramente, melhorar a produção de dados nas áreas de saúde, educação e segurança e analisá-los conjuntamente. Assim, vamos conseguir pensar melhor o fenômeno da violência contra mulher sob a ótica da saúde pública. E isso vai se refletir nas respostas que o poder público irá elaborar. Mas estas respostas terão de englobar diversos níveis, incluindo o plano educacional, da área da saúde e da segurança pública. E também das políticas da igualdade racial, que igualmente deveriam permear este conjunto de áreas desde uma perspectiva transversal.
Acesse em pdf: O sexo e a cor da desigualdade, entrevista com Marcelo Paixão (CLAM – 10/01/2012)
 
     
                     
                     
                    