A Lei 11.340/2006, conhecida nacionalmente como Lei Maria da Penha, apresenta normas de proteção integral à mulher vítima de violência doméstica e familiar. Na ocorrência de quaisquer das violências descritas no artigo 7º da citada lei, é comum serem necessárias ações cíveis, a serem propostas no afã de que aconteça a solução de outras demandas, não somente as criminais.
É muito bom elucidar, como diz o artigo 5º da Lei Maria da Penha, que a violência doméstica e familiar acontece no âmbito das relações domésticas, assim entendidas como aquelas que ocorrem no convívio permanente de pessoas; no âmbito familiar; e, ainda, nas relações íntimas de afeto.
Aquele ou aquela que agride dentro dos lares conhece as vontades, a intimidade e as fragilidades das suas vítimas. Os legisladores e legisladoras, ao pensarem nessa importante norma afirmativa, que tem como finalidade criar mecanismos para coibir, prevenir, punir e erradicar as violências dentro dos lares, trouxeram inovações ao atender da forma mais segura possível àquelas que por muitos anos foram deixadas a protocolar ações complexas e “recheadas” de ingredientes de violência. Assim, deixaram evidente a importância do trâmite das ações cíveis e criminais em apenas um local, ou melhor, um juízo, para o processamento, o julgamento e a execução das causas decorrentes da violência doméstica e familiar.
Os artigos 14 e 33 da Lei Maria da Penha são textuais em afirmar que as demandas cíveis e criminais originadas de violência doméstica e familiar contra a mulher devem tramitar em apenso, isto é, de forma conjunta.
De outro lado, como as medidas protetivas de urgência, em regra, inauguram os processos entre vítima e agressor, também os artigos 22, 23 e 24 evidenciam que a Lei Maria da Penha é mista em seu nascedouro. É sabido que as medidas protetivas não são exaustivas e podem ser requeridas desde o início, como garantia a salvaguardar a integridade física da mulher, dos seus descendentes, familiares, amigos e amigas e, ainda, bens móveis e imóveis adquiridos na convivência.
Juridicamente, é possível afirmar que a natureza jurídica da Lei 11.340/2006 é mista ou híbrida, sendo cível e criminal. Teria maior viés cível ou criminal? Não há como afirmar. O que se sabe é que as vítimas, muitas vezes, só conseguem sair do episódio de violência doméstica com a resolução dos processos cíveis. Outras vezes, questionadas se desejam a punição do pai de seus filhos e filhas, daquele que com ela dividiu esperanças futuras e intimidades, a resposta é negativa. Claro, em algumas circunstâncias, dependendo da situação, não cabe a elas essa escolha.
Fazendo um apanhado das estatísticas nacionais de violência doméstica e familiar contra as mulheres, principalmente após o advento da Lei Maria da Penha, é de se notar ano a ano pequena redução e pequeno aumento. Em conclusão, a violência doméstica e familiar em números, é a mesma. Contudo, existe um delito com sensível aumento estatístico, os feminicídios dentro de casa. E esses assassinatos estão acontecendo em larga escala, pelo inconformismo do homem com o término do relacionamento.
Com a independência feminina muito aparente no século 21, as mulheres não aceitam por muito tempo as agressões dentro de casa. Logo, não é difícil dizer que esses crimes são anunciados e podem ser evitados. E se os feminicídios continuam acontecendo, por certo, existem deslizes do Poder Público a serem corrigidos.
As mulheres são ameaçadas ao anunciar ou protocolar ações judiciais de divórcio, dissolução de união estável, guarda dos filhos e filhas, alimentos, e por aí afora. Em diversos casos de feminicídio que tiveram destaque na mídia nacional, os agressores não concordavam que questões cíveis deveriam ser resolvidas após a dissolução do relacionamento amoroso. O “caso Eliza Samúdio” é um deles. Segundo consta no conjunto probatório, o goleiro Bruno queria se livrar do pagamento de pensão alimentícia ao filho dele e dela. Por “piedade” de alguém o descendente foi poupado.
Além de se verem obrigadas a peregrinar em busca de direitos, de se submeterem a decisões conflitantes, muitas vezes sem a devida compreensão das violências por elas sofridas, de precisarem relatar os seus problemas a vários juízos e autoridades, elas estão perdendo a vida para sair da violência doméstica.
Parece óbvio que a proteção integral a essa mulher perpassa pela resolução de todos os processos (cíveis e criminais). Pensando, por exemplo, em uma situação de alimentos para uma mulher vítima de violência doméstica e familiar, quem melhor para analisar se ela sofreu alguma forma de violência que a fez se tornar uma dependente emocional do agressor senão o julgador ou julgadora que conhece as agressões na esfera criminal? Sem contar que as Varas ou Juizados de Proteção à Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar possuem, ou devem possuir, equipe multidisciplinar especializada para a confecção de laudos que são incluídos como prova em processos cíveis e criminais sobre a questão (artigos 29 a 32 da Lei 11.340/2006).
Verdadeiramente, mesmo com os artigos 14 e 14-A da Lei Maria da Penha em plena vigência, não há cumprimento em âmbito nacional da competência mista que representaria grande proteção. Atualmente, apenas o Poder Judiciário do Estado de Mato Grosso enxergou e enxerga o quanto a competência ampliada é importante na proteção e aplica o artigo 14, com o Provimento nº 018/2006 do Conselho da Magistratura. O mais correto, sem qualquer dúvida, seria a instituição do juízo universal para a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Onde as agressões já ocorreram, há necessidade de grande cuidado no atendimento e atenção à mulher. A vulnerabilidade dela é visível em qualquer circunstância, dentro da unidade doméstica. A carga de historicidade e religiosidade e a diferença na compleição física fazem-na vulnerável em ligações domésticas.
Em acontecendo um ato de violência doméstica, imediatamente deveria ser aberto o respectivo juízo universal para processamento e julgamento das ações, inclusive com o “chamado” de possíveis litígios já tramitando em outros juízos em que fossem parte vítima e agressor.
É evidente que o volume de ações a aportar em determinada vara ou juizado será bem maior, tendo em vista que os juízos da atualidade a cuidar de assuntos tais se perfazem em apenas criminais. Todavia, se pensar na proteção à mulher é o ideal, arrazoar quanto à ampliação do serviço ao invés de reduzir é o buscado.
A ocorrência de delitos envolvendo violência doméstica e familiar faz nascer concomitantemente as demandas cíveis. Permitir que as mulheres protocolem ações cíveis em varas que não são especializadas no efetivo amparo é deixá-las “largadas”, como sempre aconteceu e continua acontecendo.
A sensibilidade, a empatia e a compreensão quanto aos direitos humanos das mulheres, aliás, conforme inteligência do artigo 6º da Lei 11.340/2006, são ingredientes necessários para saber aquilatar que elas estão sendo lesionadas e assassinadas dentro de casa. E a dificuldade encontrada na solução das ações cíveis, em juizado ou vara que não são especializados no atendimento de violência doméstica, causa danos e traumas sem precedentes.
Quando legisladores e legisladoras pensaram no artigo 14 da Lei Maria da Penha, com certeza, o incluíram para o seu cumprimento.
Posteriormente, com o advento da Lei 13.894/2019, que acrescentou à Lei Maria da Penha a redação do artigo 14-A, com a finalidade de “virar a página da vida da mulher”, resolvendo ações de divórcio e dissolução de união estável mais rapidamente no juízo especializado de proteção à mulher vítima de violência doméstica, não houve sensação de tranquilidade.
Existe fatalmente o entrelaçamento dos processos e interesses cíveis e criminais pertencentes ao arcabouço de provas colhidas nas duas esferas, quando acontece a violência doméstica e familiar.
Enquanto não houver o entendimento de que a violência doméstica e familiar é uma pandemia invisível e que assola a todos e todas indistintamente, não haverá preocupação com pessoas, mas sim com processos.
O sistema de justiça no todo acompanha o Poder Judiciário. Em havendo ampliação do número de varas e juizados especializados para a apreciação e julgamento das ações que envolvem violência doméstica e familiar a título de juízo universal, a criação de estrutura nas demais instituições será realidade.
Ainda não foi possível a instituição do juízo universal para o julgamento das ações cíveis e criminais em casos de violência doméstica e familiar na legislação brasileira. No entanto, sem pestanejar, aqueles e aquelas que atuam nessas demandas bem sabem que a melhor solução seria essa. A melhor Política Judiciária para proteção às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar no momento seria a instituição do juízo universal para a apreciação, julgamento e execução de todas as ações envolvendo mulher e agressor.
As ações que envolvem direitos humanos merecem muito mais que sensibilidade e afinidade e devem perseguir o verdadeiro arquétipo de qualidade no tratamento. Enquanto a inércia é realidade nacional, as mulheres estão sendo vítimas de feminicídios no lugar que deveria ser de mais absoluta segurança: em casa.
Rosana Leite Antunes de Barros é defensora pública. Atual coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso (NUDEM/MT), é mestranda pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso.