“Mas ele nunca me bateu”. Para profissionais que trabalham com mulheres em situação de violência, ativistas da luta pelos direitos das mulheres, pesquisadoras/es ou mesmo mulheres que já passaram – ou estão passando – por contextos de violência doméstica, infelizmente, esta é uma frase demasiadamente comum.
Com frequência, histórias de relações violentas descrevem uma constante de xingamentos, desqualificações e humilhações que, muitas vezes, escalam para ameaças e coerções, tentativas de controle, bem como a instauração de um cenário de medo e submissão. A frase “mas ele nunca me bateu” aparece em relatos de uma atmosfera que, embora muito violenta, não traz consigo a faceta mais material e evidente – e, por isso, considerada mais grave – da violência doméstica: o olho roxo, a mulher espancada, os cortes e hematomas. A violência física.
No dia de ontem, 28 de julho, foi sancionada no Brasil a Lei n. 14.188/2021, que criou o crime de “violência psicológica”, resultado de uma demanda bastante específica de ativistas e profissionais que atuam com mulheres em situação de violência doméstica.
A poucos dias do marco de 15 anos da criação da Lei Maria da Penha (Lei n.11.340/2006), sancionada em 7 de agosto de 2006, muitas pessoas podem estar se perguntando qual seria a novidade trazida com a mudança, uma vez que no texto da própria Lei Maria da Penha a “violência psicológica” é descrita em seu artigo 7º, inciso II, como: “qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões”.
No entanto, algumas especificidades do Direito enquanto linguagem e ferramenta técnica implicam grandes dificuldades para encaminhar dentro do sistema de justiça, pois essas “violências sutis”, que não deixam marcas visíveis, não são facilmente traduzidas em crimes descritos pelo nosso Código Penal.
É importante saber que a Lei Maria da Penha não criou definições de crimes; ela é uma lei processual, que indica procedimentos diferentes em casos de tipos penais já existentes, mas que acontecem dentro de um contexto de violência doméstica e familiar. Tipos penais são condutas que a lei proíbe a partir de descrições e estabelecimento de sanções/punições. Via de regra, quando uma mulher é atendida em uma delegacia, por exemplo, são redigidos boletins de ocorrência de “lesão corporal” (art. 129) e/ou “ameaça” (art. 147) e “injúria” (art. 140).
A criação do crime da “violência psicológica” a partir da nova lei finalmente dá respaldo técnico-jurídico para que casos permeados pela frase “mas ele nunca me bateu” possam ser encaminhados dentro do sistema de justiça. Sabemos, é claro, que a violência doméstica contra mulheres não será solucionada pela atuação apenas do Direito Penal, mas a ausência de uma ferramenta para dar a devida seriedade a violações não materiais é um passo no caminho do enfrentamento à violência contra mulheres no país.
Beatriz Accioly Lins é doutora em Antropologia Social (USP) e coordenadora de Pesquisa e Impacto do Instituto Avon.