04/06/2012 – Para servir de exemplo, promotor manda a júri desempregada que fez autoaborto

04 de junho, 2012

(O Estado de S. Paulo) Uma mulher de 37 anos, que cometeu um autoaborto em 2006, vai a júri popular. Dependente de drogas, desempregada e mãe de dois filhos, ela foi denunciada pelo Ministério Público, absolvida em primeira instância, mas terá de sentar no banco dos réus por determinação do Tribunal de Justiça de São Paulo, que atendeu ao recurso da promotoria.
Keila Rodrigues mora em Paulo de Faria, uma cidadezinha no interior de São Paulo com pouco mais de 8,5 mil habitantes, distante 150 quilômetros de São José do Rio Preto. Ela pagou R$ 100 por dois comprimidos Cytotec, um abortivo de uso restrito, comprados clandestinamente.
No dia 31 de outubro de 2006, grávida de cinco meses, ela foi até o Hospital de Base de Rio Preto e colocou os comprimidos na vagina. Pouco tempo depois, passou a ter fortes contrações e precisou ser internada imediatamente. Como a gravidez era avançada, o feto não foi expulso naturalmente, e Keila entrou em trabalho de parto antecipado.
O bebê – que recebeu o nome de Amanda – nasceu de parto normal no dia 2 de novembro, pesando 615 gramas. A menina viveu por 20 dias, mas não resistiu. Morreu em decorrência de uma infecção neonatal, provocada pela prematuridade extrema.
Queixa. O caso foi parar na polícia depois que uma enfermeira do hospital registrou uma queixa contra Keila numa delegacia. A atitude da enfermeira é condenada pelo Ministério da Saúde na nota técnica Atenção Humanizada ao Abortamento e pelo Código de Ética de Profissionais da Enfermagem.
O inquérito foi concluído e enviado ao Ministério Público, que entrou com uma denúncia formal contra Keila na Justiça. Sem dinheiro para contratar advogado, Keila recebeu o benefício da assistência gratuita – uma parceria da Defensoria Pública com a Ordem dos Advogados.
A advogada Maria do Carmo Rocha Chareti foi então nomeada para defender Keila no processo. E ela mesma teve dificuldade para localizar a acusada. “Keila mora nas ruas. É pobre, alcoólatra, dependente de drogas. Nos vimos uma única vez antes da audiência com a juíza”, conta.
Na audiência, Keila compareceu aparentemente alcoolizada – o que, segundo Maria do Carmo, demonstra as condições precárias em que vive. Ela confirmou que tentou praticar o aborto, mas disse estar “profundamente arrependida”.
Diante da situação, Keila foi absolvida sumariamente pela juíza Milena Repuo Rodrigues, que entendeu que, diante das condições expostas por Keila, a conduta dela foi legítima e ela não poderia ser responsabilizada pelo crime de prática de aborto.
Recurso. O promotor Marco Antônio Lélis Moreira, no entanto, não ficou satisfeito com a absolvição e recorreu ao Tribunal de Justiça. Na argumentação, Moreira diz que não há dúvida de que houve o aborto. E emenda: “É lamentável, em pleno século 21, uma mulher experiente não se utilizar dos meios impeditivos de uma gravidez para depois, grávida, escolher a via criminosa do aborto e encontrar a benevolência do magistrado”.
Em entrevista ao Estado, o promotor Moreira diz que fez a denúncia contra Keila porque ela já tinha antecedentes criminais e porque ela não apresentou provas suficientes para demonstrar que vivia em condições sub-humanas e seus dois filhos estavam sob a guarda da avó.

“Além disso ela confessou ter cometido o aborto. Essa ação vai servir de exemplo para a juventude da cidade prevenir a gravidez”, afirmou o promotor.
“No júri vou pedir a condenação de Keila como forma de prevenção geral. É uma punição moral para que as pessoas entendam que o aborto é criminoso”, diz Moreira, admitindo que é raro que casos de aborto sejam denunciados e terminem em júri.
A advogada Maria do Carmo diz que ficou surpresa com a decisão do TJ de mandá-la para júri popular. “Keila está arrependida. Tenho certeza de que os jurados vão absolvê-la.”

Entidades que defendem direitos da mulher criticam TJ

Para ONG, caso expõe drama de mulheres que recorrem ao aborto e pede debate da sociedade
Entidades que defendem os direitos das mulheres criticaram a decisão do Tribunal de Justiça de mandar para júri popular a desempregada Keila Rodrigues, pela prática de um autoaborto.

Já a Comissão Vida e Família da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil afirmou em nota que o ato é gravíssimo, mas que, “em determinadas situações, deve prevalecer sobre o aspecto punitivo, o de possível acolhida e tratamento”.

Em nota, a comissão diz que o governo precisa implementar políticas públicas que garantam os cuidados à gestante e à criança ainda no ventre.

“O aspecto punitivo, no entanto, não pode ser desprezado, pois é um sinalizador pessoal e social de fundamental importância, além de resguardar e proteger uma vida humana inocente e indefesa.”

Kauara Rodrigues, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), diz que nos últimos anos as mulheres voltaram a ser punidas pela prática do aborto.

Ela relembra um caso de 2007, em que quase 10 mil mulheres foram indiciadas pela prática de aborto em uma clínica de planejamento familiar em Mato Grosso do Sul.

“Essas mulheres foram vítimas de perseguição e quase duas mil delas sofreram vários tipos de violação aos direitos humanos”, diz Kauara.

Desespero. No caso de Keila, Kauara diz que o sigilo profissional envolvendo o caso da paciente foi violado – o que é ilegal. “Ela é uma mulher pobre vivendo em uma situação de absoluta marginalidade e desespero. São essas mulheres que recorrem à interrupção insegura da gravidez e são elas que são punidas”, diz.

Maria José Rosado Nunes, presidente da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir, recebeu a notícia com surpresa. “A pergunta que a sociedade deve fazer é: ‘A solução para essa mulher é prender ou cuidar?'”, disse.

Autoaborto. Para Maria José, é preciso entender as razões que levaram Keila a provocar um autoaborto. “Uma mulher só aborta quando considera que levar uma gravidez naquele momento é impossível para ela, seja por condições psicológicas, financeiras ou de abandono”, diz.

Kauara avalia, entretanto, que o fato de o aborto ter sido praticado no quinto mês da gestação pode pesar contra Keila na hora do julgamento.

“Não foi aborto, foi um parto. Isso poderá prejudicá-la. Mas não dá para dizer que essa mulher teve acesso aos meios de impedir uma gravidez. Isso é julgamento moral”, diz.

Já Maria José diz que esse fato deve ser visto como mais uma razão para discutir o tema. “Ela provavelmente só provocou esse aborto no quinto mês porque não teve meios de fazer isso antes. A mulher só faz o aborto quando encontra condições. Ela é a vítima e a sociedade deveria estar no banco dos réus.”

Enfermeira violou norma ética de sigilo

As normas do Ministério da Saúde proíbem o médico ou qualquer outro profissional da saúde de comunicar um abortamento espontâneo ou provocado à autoridade policial, judicial ou ao Ministério Público, com base no sigilo profissional entre o paciente e o profissional.

O documento Atenção Humanizada ao Abortamento deve ser seguido por todas as unidades de saúde e diz que “o não cumprimento da norma pode ensejar procedimento criminal, civil e ético-profissional contra quem revelou a informação, respondendo por todos os danos causados à mulher”.

Infração. O Código de Ética do Profissional da Enfermagem também recomenda o sigilo ético-profissional, exceto quando há autorização por escrito. Assim, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) informou, por meio da assessoria de imprensa, que a profissional pode ter cometido infração ética.

A assessoria informou que o enfermeiro está obrigado a seguir ordenamentos e protocolos, como o do Ministério da Saúde. Agora, caberá ao conselho regional da categoria fazer uma fiscalização e abrir uma sindicância para confirmar se houve ou não uma infração ética.

No caso em questão, uma enfermeira do Hospital de Base de São José do Rio Preto foi quem comunicou à polícia que Keila Rodrigues provocou um autoaborto. Como consequência, Keila foi processada e será julgada por um júri popular.

Acesse essas matérias em pdf: 
Justiça acolhe recurso e manda a júri desempregada que fez autoaborto (O Estado de S. Paulo – 04/06/2012)
Entidades que defendem direitos da mulher criticam TJ (O Estado de S. Paulo – 04/06/2012)
Enfermeira violou norma ética de sigilo (O Estado de S. Paulo – 04/06/2012)

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