Casamento civil homoafetivo: Após 3 anos, direito consolidado

10 de maio, 2014

(O Popular, 10/05/2014) Número de casos sobre casamento é considerado baixo, o que demonstra normalidade

Passados quase três anos da decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu a união estável entre casais do mesmo sexo e prestes a se completar um ano da resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que proibiu os cartórios de se recusarem a celebrar o casamento civil homoafetivo, o que se observa é uma consolidação desse entendimento. Poucos processos envolvendo casamentos chegam à Justiça – o que significa que estão sendo feitos normalmente nos cartórios, sem impugnações – e os direitos vêm sendo reconhecidos, inclusive por familiares dos casais.

“Fazemos esses casamentos rotineiramente. Quando há esse silêncio em torno do assunto, significa que tudo está correndo normalmente”, diz ao POPULAR o tabelião Antônio do Prado. Em seu cartório são celebrados todo mês dez casamentos, em média. A proporção de uniões entre casais do sexo masculino e do sexo feminino é praticamente idêntica. Antônio do Prado observa que antes da resolução do CNJ, os cartórios faziam as declarações de união estável. Agora, o casamento civil homoafetivo incorporou-se à rotina dos cartórios. “O nubente pode adotar o nome do outro e escolher o regime de bens. É um casamento como outro qualquer”, acrescenta o tabelião.

AVANÇO – Operadores do Direito ouvidos pelo POPULAR foram unânimes em apontar o papel do Judiciário para que essas conquistas fossem alcançadas. “O Judiciário tem avançado. A grande diferença com o Legislativo é que ele não depende de compromisso com a opinião pública”, pondera a juíza Sirlei Martins da Costa, da 1ª Vara de Família e Sucessões de Goiânia. “Além de não se preocupar em agradar, o Judiciário tem condições de fazer uma análise técnica”. Para Sirlei, é evidente que o julgamento do STF e as decisões que vieram depois tiveram reflexo não só no âmbito do Judiciário, mas em toda a sociedade.

NATURALIDADE – “Hoje as pessoas veem esses casos com mais naturalidade e isso é consequência da atuação da Justiça”, diz. Juíza há 21 anos, dos quais 11 na 4ª Vara de Família de Goiânia, Maria Cristina Costa observa que a partir do momento em que a Justiça decidiu que caberiam união e até casamento homoafetivo, houve uma natural redução no número de pedidos para reconhecimento de união estável ou de casamento. Mas ela observa que, mesmo com o reconhecimento da lei, nem sempre as pessoas conseguem exercer seus direitos com liberdade.

“Não há um caminho pavimentado ou tranquilo para os que optam por assumir sua identidade sexual. Em geral, eles travam grandes batalhas em casa, na família, no trabalho”, afirma.

Para ela, há um longo caminho a percorrer, já que não é porque os tribunais superiores decidiram que a sociedade aceitará esses arranjos com naturalidade. “O que se nota, pelas demandas que nos chegam, é que as uniões entre casais do mesmo sexo vêm paulatinamente sendo aceitas pela sociedade. Maria Cristina também ressalta que o Judiciário não poderia se calar diante das mudanças. “Temos de ter o olhar sempre voltado à dignidade da pessoa humana e ao respeito aos novos padrões familiares”.

Maria Cristina observa ainda que foram as decisões de primeira instância, mas varas de família, que levaram o casamento homoafetivo para a pauta dos tribunais superiores, até o julgamento histórico do Supremo. “A Justiça está alerta, vigilante e, na medida do possível, ágil para atender a essas demandas”.

Muitos casos que chegam ao Judiciário são de declaração do fim da união estável, em caso de morte de um dos cônjuges, para reconhecimento de direitos de herança e previdenciários. A juíza Sirlei Maria da Costa diz que, coincidência ou não, na maioria dos casos que chegam às suas mãos a família aceita. Ela se lembra de um caso em que um dos irmãos do falecido era padre e ela chegou a pensar que, por motivo de convicção religiosa, ele pudesse se opor. “Vieram todos os parentes. Eles fizeram questão de deixar claro que concordavam”, relata.

DIVÓRCIO – Não houve nas varas de família de Goiânia nenhum pedido de divórcio de casais homoafetivos. Os casos que chegaram ao Judiciário goiano, cujo número não é significativo, referem-se apenas declarações de fim da união estável.

Diferença no papel

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Entenda o que significa união estável e casamento

■ A união estável

Geralmente consolida uma situação de fato, de casais que já vivem juntos, na mesma casa ou não, já que o que mais a caracteriza é a vontade de viver juntos como uma família. O artigo 1.723 do Código Civil a define como uma “união pública, duradoura e estável”. A regra é a mesma para casais heterossexuais ou homoafetivos.

■ Casamento

Já o casamento é um ato solene, em que os noivos expressam naquele momento sua vontade de se casar. Eles elegem o regime de união (comunhão total ou parcial de bens ou separação total). A certidão de casamento é idêntica à dos casais heterossexuais, com a substituição de termos, que são comuns de dois gêneros.

Histórias de superação

Casais relatam o motivo de procurarem o casamento e rapaz cita sua luta para conseguir provar relacionamento estável com companheiro

Filha legítima  – Juntas há mais de sete anos, a assistente administrativa Michelle Almeida Generozo Prudente e a professora Thaise Cristiane Prudente têm muito o que comemorar com a legalização do relacionamento. Elas se casaram em dezembro de 2012 e tiveram a primeira filha, Helena, no último dia 25. A gestação no corpo de Thaíse foi possível com a inseminação do óvulo de Michelle. O casal foi o primeiro a conseguir, em maio de 2012, junto ao Conselho Regional de Medicina de Goiás (Cremego), o direito de se submeter à técnica de reprodução assistida. Michelle conta que, embora estivessem na condição de união estável, a decisão pela casamento civil “foi por uma questão de comodidade”. Amparadas pela lei enquanto casal, conseguiram ampliar essa condição à filha. Elas entraram com uma ação judicial para garantir a Helena a dupla maternidade, ou seja, que o nome das duas mães estivesse na certidão de nascimento da filha. O nome da criança, ficou então, Helena Abreu de Almeida Lopes Prudente.

Pós-morten – O caso de Z.L., 33 anos, assistente administrativo, chama a atenção pela situação inusitada. Durante sete anos ele viveu com o companheiro que trabalhava numa fazenda de confinamento de gado. Um acidente de motocicleta em 2007 levou seu parceiro, então com 30 anos, à morte. A partir daí, Z.L. começou a lutar na Justiça para o reconhecimento oficial da relação. “Não tínhamos nenhum documento para a declaratória da união estável, mas consegui provar que, embora não tivéssemos conta conjunta, ele tinha acesso à minha conta e vice-versa. Juntei ao processo fotos e declarações de pessoas que nos conheciam. A decisão favorável saiu em 2012”, conta. Como o companheiro de Z.L. era oriundo do Piauí, toda a ação judicial tramitou por carta precatória. “Mesmo assim, a família dele nunca se manifestou. Ele não gostava de falar na família, havia um rompimento”. Com o documento de união estável pós-morten, Z.L. agora tenta um novo passo: o direito a pensão do companheiro que trabalhava com carteira assinada. “O INSS negou, mas insisti. Eles me pediram três testemunhas, levei quatro. Meu processo está agora em última instância, na seção de Reconhecimento de Direito”, conta.

Bens comuns – A enfermeira Renata Teixeira, 42 anos, e a administradora Maria Tereza Bottosso, 50, dividem a mesma casa há quatro anos. Elas assinaram o contrato de união estável, mas querem ir além. Já entraram com o pedido para que o documento seja convertido em casamento civil. “O contrato de união estável já nos trouxe direitos iguais ao de qualquer casal, por isso vamos buscar mais”, afirma Renata. Com o contrato, Renata pode colocar Tereza como sua dependente no plano de saúde.

Mãe de uma jovem de 18 anos, que vive com as duas, Renata explica que ambas possuem bens conquistados antes da união. O casamento civil, no regime de comunhão parcial de bens, vai garantir às duas a preservação desses direitos, assim como poderão adquirir bens conjuntamente sem prejuízo a nenhum lado em caso de interferência familiar se houver a falta de uma delas.

Aliança e bolo – Em Mineiros, no Sudoeste goiano, Marcelo Resende de Sousa, de 23 anos, e Jorge Fernando de Oliveira, de 20, chamaram um amigo mais velho para conduzir uma cerimônia informal para marcar a união deles que já dura oito meses. Com direito a alianças, bolo e a presença das mães de ambos, o evento foi realizado em fevereiro deste ano. O casamento civil está previsto para os próximos dias. “Ainda não formalizamos por uma questão financeira, mas isso vai ocorrer em breve. Queremos construir nossa vida a dois e o contrato de união estável é fundamental para que nossas conquistas não nos sejam tiradas na falta de um de nós. Marcelo trabalha numa locadora de Mineiros e Jorge, que é acadêmico de Psicologia, é funcionário de uma grande empresa local no setor de triagem. O casal tem planos de, no futuro, adotar um casal de filhos.

Mudanças também no Código Penal Brasileiro

Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) em Goiás, a advogada Maria Luiza Póvoa pondera que decisões em relação a uniões homoafetivas e outras relacionadas aos novos arranjos familiares têm reflexo não apenas no Direito de Família, mas também na tipificação de crimes, no Direito Penal. “Há várias alterações no Código Penal”, observa, citando como exemplo o crime de estupro, que antes era tipificado como “constranger mulher mediante violência ou grave ameaça a ter relação sexual”. Hoje, lê-se “constranger alguém”.

Outras têm efeitos no dia a dia das pessoas, como as leis e decisões sobre adoção e que disciplinam sobre os termos nas certidões de nascimento e casamento, em que são usados termos comuns de dois gêneros, como “pais”, “avós” e “nubente”. “São alterações feitas para adequar à nova realidade. Caminhamos na direção do que preconiza a Constituição, de formar uma sociedade solidária, pluralista e sem preconceito”, diz. Outras mudanças igualmente importantes e marcantes são em relação a questões como guarda de filhos. “O casamento hoje é visto como uma questão de responsabilização, devendo ser mantido enquanto durar o afeto”.

DIGNIDADE – Maria Luiza também aponta que, no vácuo do legislador, as grandes mudanças vieram por parte do Poder Judiciário, no sentido de dar guarida à dignidade humana e cumprir os preceitos constitucionais. Para ela, é preciso um acompanhamento multidisciplinar para acompanhar as rápidas transformações do Direito. “Não há como dissociá-lo, por exemplo, da psicologia e da bioética”, afirma a presidente do IBDFam em Goiás.

OAB faz projeto de Estatuto da Diversidade

Vice-presidente da Comissão de Direito Homoafetivo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a advogada goiana Chyntia Barcellos informa que a instituição elaborou o projeto do Estatuto da Diversidade Sexual e está colhendo assinaturas em todo o País para apresenta-lo ao Congresso Nacional. Ela justifica que, mesmo com os incontestáveis avanços promovidos pelo Judiciário, há situações que necessitam de dispositivos legais para regulamentá-las, mesmo havendo direitos assegurados pelas decisões judiciais, especialmente do Supremo Tribunal Federal.

FILHOS – O reconhecimento dos filhos tidos a partir da reprodução assistida é um dos aspectos em que Chyntia aponta a ausência de lei como obstáculo, apesar de ser uma situação consolidada de fato. Sobre os filhos socioafetivos, adotados por casais do mesmo sexo, apesar de também não haver regulamentação, a advogada observa que casais homoafetivos já podem e têm se habilitado conjuntamente, conseguindo adotar crianças em todo o País. “No geral, o balanço que fazemos desde a decisão do STF, é extremamente positivo, essas pessoas e famílias passaram a ter mais visibilidade e a ter garantidos seus direitos”, avalia Chyntia.

Acesse o PDF: Após 3 anos, direito consolidado (O Popular, 10/05/2014)

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