Por uma divisão mais justa: mulheres ainda são obrigadas a abrir mão da profissão para cuidar de crianças e idosos

08 de fevereiro, 2015

(Correio Braziliense, 08/02/2015) Mulheres ainda ficam com a maior parcela do trabalho doméstico e são obrigadas a abrir mão da profissão para cuidar de crianças e idosos. Debate sobre igualdade de gêneros aborda políticas públicas para conciliar trabalho e vida familiar

Há cerca de dois anos, Neila Chagas, 36 anos, deixou de trabalhar como massagista e esteticista para cuidar da avó, Janete da Silva, 82, que, após sofrer um infarto, teve um marca-passo implantado. No início de 2014, dona Janete passou 37 dias internada por causa de uma infecção bacteriana, que provocou amputação de parte do pé direito. A cirurgia diminuiu a mobilidade da aposentada, que hoje usa cadeira de rodas e depende de ajuda para fazer boa parte das atividades do cotidiano. A decisão de Neila impactou as finanças. No entanto, ela não se arrepende. “Sair do trabalho pesou financeiramente, mas a minha prioridade é ela” diz. Além da avó, ela ajuda a cuidar de dois sobrinhos pequenos. A principal fonte de renda da família de oito pessoas é uma pensão paga pelo pai de Neila.

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Neila abriu mão da carreira para cuidar da avó (Foto: Reprodução)

A situação se repete em muitos lares do Brasil. Apesar da crescente inserção da mulher no mercado de trabalho, a divisão das tarefas domésticas ainda é desequilibrada. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2011, as mulheres acumulavam, em média, uma jornada de trabalho de 58,5 horas semanais, sendo 36,2 horas fora de casa e 22,3 horas em afazeres domésticos. No mesmo período, os homens trabalhavam 52,7 horas por semana, subdivididas em 42,5 horas de serviço remunerado e 10,2 horas de tarefas em casa. E, quando é necessário se ausentar para cuidar de crianças ou de idosos, cabe a elas abrir mão do posto remunerado, na maioria dos casos.

“Praticamente não há políticas públicas de conciliação de trabalho e vida familiar no país”, afirma Andréa de Sousa Gama, vice-diretora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). “O que temos são políticas que servem para diminuir esse conflito, como o investimento em creches e pré-escolas, além dos colégios de ensino fundamental que começam a adotar o horário integral. Quanto maior o investimento em educação básica, maior é o número de mulheres que entram no mercado de trabalho, com salários melhores e jornadas mais justas”, observa. “A rede de cuidados aos idosos dependentes é precária. Não há cuidadores públicos, e as despesas com esse tipo de profissional oneram muito o orçamento familiar”, avalia.

Mais equilíbrio 

A pesquisadora representará o Brasil em uma sessão temática sobre igualdade de gênero e o papel da mulher nos cuidados às crianças e aos idosos no contexto do bloco Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, na sigla em inglês) na próxima quarta-feira (11), às 16h, no Palácio do Itamaraty. O evento é organizado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE/PR). De terça-feira a sexta-feira (10 e 13), em Brasília, ocorre a primeira Reunião de ministros responsáveis por assuntos populacionais e o segundo Seminário de oficiais e especialistas em assuntos populacionais (veja quadro).

Os países do Brics guardam diferenças culturais, mas podem ser considerados semelhantes quanto à legislação sobre o assunto. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem três convenções sobre o equilíbrio entre vida familiar e profissional. A nº 103, sobre proteção à maternidade, foi ratificada apenas pelo Brasil e pela Federação Russa, entre os países do bloco. Já a convenção nº 156, que estabelece que trabalhadores com responsabilidades familiares não devem ser discriminados no ambiente profissional, foi adotada apenas pela Rússia. Por fim, a convenção nº 183, que revisa e amplia direitos à maternidade já garantidos pelo documento 103, não é validada por nenhum dos cinco países.

“Em geral, as mulheres são vistas como responsáveis pelo cuidado das esferas reprodutiva e doméstica, enquanto o homem cuida do trabalho remunerado. Esse é um problema generalizado mundialmente”, lamenta Laís Abramo, diretora do escritório da OIT no Brasil. “Em termos de políticas, os exemplos mais avançados estão na Europa, mas, logo em seguida, está a América Latina”, diz. A diretora ressalta, no entanto, que a questão vai além das políticas públicas.

As diferenças na divisão do trabalho entre homens e mulheres se manifestam cedo, como mostram dados do Censo de 2010 e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2013. O recenseamento mostra que, naquele ano, 48,3% das jovens de 15 a 24 anos que não trabalhavam nem estudavam eram mães. A pesquisa mostra também maior índice de mulheres dessa faixa etária fora do mercado de trabalho: 27,4% contra 16% entre os homens. Os dados da Pnad, mais recentes, mostram a mesma tendência. Em 2013, 25,8% das mulheres de 15 a 24 anos não trabalhavam nem estudavam, enquanto 13,6% dos homens estavam na mesma situação. “Essa é uma demonstração clara de como está arraigada a divisão sexual do trabalho. Ainda que as jovens tenham escolaridade mais alta, quando engravidam cedo, deixam a escola e o trabalho”, analisa Tatau Godinho, secretária de Políticas do Trabalho da Secretaria de Políticas para as Mulheres. “É um equilíbrio difícil. Ainda que as jovens tenham prioridade para conseguir vagas em creches, o apoio dado não compensa a dificuldade da gestão familiar”, afirma.

Recomeço

Quando regressar ao mercado, Neila Chagas pretende mudar de área. “Não sei se quero voltar a ser massagista, agora meu foco é outro. Quero trabalhar com crianças especiais e ser intérprete de libras”, diz. Para isso, ela investe em formação e começou, neste mês, o terceiro semestre do curso de pedagogia. “Voltei a estudar por influência da minha avó”, conta. Pelo espaço limitado da casa, ela nunca considerou atender na própria residência. No entanto, a abertura de um negócio no próprio lar é a solução que muitas mulheres encontram para gerar renda e manter os cuidados com a família, como destaca a secretária de Políticas do Trabalho da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Tatau Godinho. “No Brasil, o empreendedorismo tem crescido nos últimos três anos, puxado, principalmente, pelas mulheres. O desafio é que os negócios não sejam informais. Para isso, a formalização dos empreendedores individuais tem sido facilitada”, diz.

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Luciane saiu do trabalho por causa das filhas, mas admite que voltaria ao mercado caso encontrasse condições favoráveis, como horário flexível (Foto: Reprodução)

No caso de Luciane Fiorini, 39 anos, a saída do trabalho foi uma opção. Mãe de Laura, 3, e Alice, que hoje tem nove meses, ela decidiu não voltar ao posto de secretária executiva no Ministério da Cultura depois que a licença-maternidade da primeira filha terminou. Gaúcha, Luciane cita o fato de não ter família na capital, além do custo para contratar uma babá, como elementos que pesaram na decisão. Ela não pensa em voltar a trabalhar fora de casa por enquanto. “Minha rotina é muito diferente. Não estou mais no salto alto e na maquiagem, mas isso não é algo que me frustra. Sou realizada”, diz. Segundo ela, o ponto negativo da condição é a gestão financeira da casa. “Tenho de me adequar às condições financeiras do meu esposo”, conta ela, que recebe uma mesada do marido e é revendedora de cosméticos e de utensílios de cozinha. Luciane admite que, no futuro, poderia voltar a trabalhar fora, caso as condições fossem favoráveis. “Eu trabalharia em um emprego de meio período ou em um lugar que tivesse horário flexível para acompanhar de perto as minhas filhas.”

Soluções

Entre as medidas que podem ser tomadas para diminuir a desigualdade de gênero na divisão das tarefas domésticas, estão campanhas de conscientização sobre o tema, estabelecimento de horários mais flexíveis de trabalho — tanto para homens quanto para mulheres — e discussões sobre temas ainda considerados polêmicos, como a ampliação da licença-parternidade. “A responsabilização familiar do homem é um dever e um direito. Afinal, o pai que não acompanha o desenvolvimento do filho também está perdendo”, argumenta Laís Abramo, da OIT. “Existe uma falsa percepção de que o trabalho doméstico não toma tempo. Isso deve ser mudado”, diz Andréa de Sousa Gama.

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Programação

Primeira Reunião de Ministros Responsáveis por Assuntos Populacionais do Brics

Data: 12 de fevereiro

Segundo Seminário de Funcionários e Peritos em Questões Populacionais do Brics

Data: 10 a 13 de fevereiro

» Ao fim dos quatro dias de evento, será apresentado um plano de trabalho conjunto, firmado entre os representantes do Brics, voltado para os assuntos de população e desenvolvimento

Juliana Espanhol

Acesse no site de origem: Por uma divisão mais justa: mulheres ainda são obrigadas a abrir mão da profissão para cuidar de crianças e idosos (Correio Braziliense, 08/02/2015)

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