Sou feminista e discordo da castração química como solução para conter estupros, por Nana Soares

20 de setembro, 2018

Concordar com essa tese é não entender a real raiz da violência sexual

(Emais, 20/09/2018 – acesse no site de origem)

A violência sexual no Brasil é um fato. Mesmo que você não se considere feminista, não pode negar a realidade de centenas de casos de estupro – reportados ou não – que acontecem no Brasil diariamente. Apenas em 2017, o crime foi reportado 60.018 vezes para a polícia, o que significa um estupro a cada 9 minutos. O SUS registrou outros 22.918 casos. Esses números são sabidamente subnotificados e a projeção do Atlas da Violência é que, se o estupro fosse reportado em sua real magnitude, teríamos cerca de 300 mil a 500 mil registros anuais. Quase meio milhão de mulheres estupradas todos os anos (veja mais dados aqui).

Desnecessário dizer que a barbárie instalada no Brasil contra as mulheres pede medidas urgentes. Mas nenhuma dessas medidas deve ser a castração química dos agressores, e os motivos são muitos.

castração química usa métodos hormonais para privar o paciente (no caso, homens) de impulsos sexuais. Entre outras coisas, ela dificulta a ereção. Ao aplicar essa punição, entendemos que o estupro nada mais é do que um impulso descontrolado do homem por sexo. Uma vontade incontrolável que só pode ser contida quimicamente. Acontece que estupro não é sobre isso, estupro é sobre exercer poder sobre outra pessoa.

Se você entende que o estupro é um impulso incontrolável, está dizendo nas entrelinhas que as mulheres podem provocar o estupro ao usar roupas que “ativem os impulsos sexuais” dos homens. Está colocando a culpa nas próprias vítimas. Ou ainda pior, está dizendo que o estupro é de alguma maneira compreensível, já que se trata apenas de um descontrole biológico.

Estupro não é um impulso sexual. Estupro é uma ferramenta de controle dos corpos e vidas femininas, é uma maneira de marcar quem está no poder. É uma prática implicitamente aceita na sociedade em pequenos atos (como a sexualização de crianças, a culpabilização das vítimas e por aí vai).

Estupro não é um impulso sexual. Muitos homens (e mulheres) se sentem atraídos por mulheres, independentemente da roupa usada por elas, e nem por isso as atacam. Da mesma maneira, muitos dos casos de violência sexual não são motivados por atração. As mulheres lésbicas e bissexuais que o digam: elas são vítimas de estupro por homens que gritam que vão corrigir suas sexualidades. A castração química em nada conteria estes homens.

Mas principalmente, a castração química entende que o estupro está no pênis, o que absolutamente não é verdade. Isso é reconhecido inclusive pela nossa lei, que diz com todas as letras que não é necessário haver penetração para a violência ser um estupro.

Há mulheres que são penetradas por objetos.

Há mulheres e crianças que são forçadas a tocar em partes do corpo de outras pessoas.

Há atos violentos que usam outras partes do corpo.

A imensa maioria dos casos de violência sexual contra crianças não deixa marca, pois não acontece com penetração. Meninas e meninos são forçados a ver, tocar ou a serem assistidas e tocadas.

Mais uma vez, a castração química não impede esses casos de acontecer. A incapacidade de ter uma ereção ou mesmo um menor desejo sexual não são a causa dessas violências. O que realmente causa o estupro é a ideia de que as mulheres de alguma maneira valem menos e podem/precisam ser controladas. Que seus desejos e consentimento não importam. É isso que chamamos de cultura do estupro.

Por isso, não caia na conversa de quem diz que castração química é uma medida feminista ou de apoio às mulheres. Não é. Trata-se apenas de espalhar ainda mais violência sem de fato mexer na raiz do problema. Podem castrar quantos homens quiserem, dificilmente deixaremos de registrar um estupro a cada 9 minutos nesse país.

Nana Soares é jornalista especializada em direitos da mulher e combate à violência. Faz mestrado em Gênero e Desenvolvimento na University of Sussex, na Inglaterra e é co-autora da campanha “Você não Está sozinha” contra o abuso sexual no Metrô de São Paulo.

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