Em coletiva de imprensa, a lendária filósofa norte-americana falou sobre eleições nos Estados Unidos, o combate ao racismo e exaltou feminismo negro brasileiro.
(HuffPost, 21/10/2019 – acesse no site de origem)
Angela Davis, 75, filósofa e ativista norte-americana, acredita ser impossível escolher apenas uma categoria de luta ― entre feminismo, antirracismo, anticapitalismo ou abolicionista ― que defina seu ativismo. “Não acredito que seja saudável escolher uma luta e dizer que é mais importante do que outra, mas sim, em reconhecer como as diferentes lutas se conectam”, afirmou a jornalistas na manhã desta segunda-feira (21), em coletiva de imprensa no Auditório Ibirapuera, em São Paulo.
A convite da editora Boitempo, a ativista está no Brasil para lançar o livro Uma Autobiografia, publicado originalmente em 1974 e que, em 2019, foi finalmente traduzido para o português. Davis também participou do evento “Democracia em Colapso?”, promovido pela mesma editora e pelo Sesc São Paulo, em que ministrou a conferência sob o título “A liberdade é uma luta constante”.
“Eu não posso ser uma militante antirracista sem pensar na dimensão heteropatriarcal do racismo. Eu não posso ser feminista sem reconhecer o papel que o capitalismo e o racismo tiveram em moldar o patriarcado”, completou. Em seguida, exaltou a feminista brasileira Lélia Gonzalez, morta em 1994 que, segundo ela, já pensava o conceito de interseccionalidade em seus estudos e teorias muito antes do termo aparecer e ganhar popularidade.
Esta é a primeira vez que Angela Davis vem à capital paulista. Das oito vezes em que veio o Brasil, visitou apenas Salvador (BA), Goiânia (GO), São Luiz (MA) e Brasília (DF). Assim como nas outras oportunidades, ela escolheu não dar entrevistas individuais a jornalistas, mas sim, proporcionar uma coletiva de imprensa e palestras gratuitas.
Na noite desta segunda-feira (21), “Ms. Davis” ― apelido dado carinhosamente a ela ― repetirá a conferência ministrada no último sábado (19), desta vez no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, com capacidade de 15 mil pessoas. O evento é gratuito, aberto ao público e está previsto para começar às 19h.
Davis encerrará sua vinda ao Brasil no Rio de Janeiro, na próxima quinta-feira (23). A escritora receberá a Medalha Tiradentes, uma homenagem da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) por sua trajetória. A iniciativa é da deputada Renata Souza (PSol-RJ), 1ª mulher negra no comando da Comissão de Direitos Humanos da Alerj.
Nesta data, a ativista também fará conferência aberta ao público no Cine Odeon, durante abertura do encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul: Brasil, África e outras diásporas, considerado o maior evento audiovisual destinado para negros da América Latina. Haverá um telão voltado para a Cinelândia e a palestra será transmitida nas redes sociais.
“Estou extremamente impressionada com a profundidade do trabalho realizado no Brasil. Para muitos de nós [ativistas norte-americanos], o Brasil era um uma esperança, até que vieram as eleições, e nós prometemos não pronunciar o nome de quem foi eleito. Porque na tradição das religiões africanas nomear é atribuir energia de poder”, completou. Na palestra de sábado (19), ela não mencionou os presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump nominalmente.
“Mas continuo me impressionando e sentindo muita esperança sempre que venho ao Brasil. Sinto um impulso coletivo aqui, principalmente entre os jovens, entre as jovens mulheres negras”, adicionou, em tom otimista. No último domingo (20), Angela Davis visitou acampamento das mulheres do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) e conheceu a ativista Preta Ferreira, que estava presa até o último dia 10 de outubro, após denúncia do Ministério Público que acusava ativistas por moradia de associação criminosa e extorsão.
Ainda na conversa com jornalistas na manhã desta segunda, Davis falou sobre sua aproximação com a luta LGBT e citou que, recentemente, esteve com a deputada estadual Erica Malunguinho (PSol-SP) e se emocionou com o trabalho dela. Em 2020, a editora Boitempo pleneja lançar o O significado da liberdade, novo livro de Davis, que traz artigos dentro desta temática.
“Eu acho que nenhum outro país já elegeu uma mulher negra e trans como deputada oficialmente. Eu fiquei muito comovida ao ouvir sobre o trabalho que ela tem feito (…). Aqueles de nós que vêm trabalhando contra a violência do Estado, a violência policial, a violência carcerária, temos que reconhecer que as mulheres negras trans são os alvos mais consistentes de violência”, pontuou.
Para a filósofa, o combate à violência de gênero precisa focar nas mulheres negras trans porque “quando [todas] as mulheres negras forem finalmente livres, isso significará que o mundo será livre”, disse. “Quando falamos ‘vidas negras importam’ não estamos falando de um grupo específico, estamos falando de humanidade. E o mesmo argumento se aplica à comunidade trans.”
“Esta é uma das mais importantes dimensões do feminismo. Nós não falamos somente sobre interconexões e interseccionalidade. Nós reconhecemos que ao falarmos sobre uma questão aparentemente pequena, afetamos o todo. E isso faz parte do entendimento de lutar por liberdade e justiça para todos.”
Precisamos fazer mais do que eleger um presidente. Queremos tirar Trump, mas isso não vai resolver os problemas mais profundos.
A professora da Universidade da Califórnia ainda confessou estar entusiasmada com o crescimento da popularidade de políticos socialistas nos Estados Unidos, principalmente entre jovens, como o senador e pré-candidato à Presidência Bernie Sanders e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez.
Davis, que concorreu à vice-presidência dos EUA pelo Partido Comunista em 1980 e 1984 afirmou que “é muito empolgante ver um número tão grande de jovens indo em direção ao anticapitalismo”, mas que é preciso um movimento radical de transformação. “Precisamos fazer mais do que eleger um presidente. Queremos tirar Trump, mas isso não vai resolver os problemas mais profundos”, disse na segunda-feira.
E como combater o racismo que se manifesta atualmente em novas formas e roupagens? “O racismo nunca permanece o mesmo. Mas as estruturas [sociais] permitem que o racismo do passado tenha ressonância ainda hoje”, disse a ativista, ao pontuar que os efeitos da escravidão não desapareceram. “Vamos começar agora o que deveria ter sido feito um século e meio atrás. Este é só o começo. É muito empolgante. E antes de tudo, não podemos parar.”
O ativismo de Angela Davis
Documento policial com os dados de Angela Davis quando de sua prisão, em 1970. “Considere possivelmente armada e perigosa”, dizia ficha policial.
Desde os anos 1980 Angela Davis faz constantes visitas ao Brasil. “As pessoas me perguntam: ‘Você já esteve no Rio?’ Não. ‘Você já esteve em São Paulo?’ Não. Mas estive em Salvador e de novo e de novo”, disse, ao iniciar palestra na UFBA (Universidade Federal da Bahia), em 2017, sua última visita ao País. Em 2019 é a primeira vez que Davis visita São Paulo e, também, Rio de Janeiro.
Na ocasião, em 2017, a presença da ativista, que é referência mundial no enfrentamento antirracista e do pensamento feminista, fez parte do evento “Julho das Pretas”, que promoveu atividades organizadas por coletivos.
A filósofa e ex-presa política ministrou a conferência “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo”. Com mais de 400 alunos e convidados, o salão nobre da reitoria da UFBA atingiu sua capacidade máxima.
Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.
“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se isso, muda-se a base do capitalismo”, disse no evento na reitoria da UFBA.
Na década de 70, Angela Davis integrou um braço do grupo Panteras Negras nos Estados Unidos e foi membro do Partido Comunista. Ela foi presa injustamente e ficou mundialmente conhecida pela mobilização da campanha “Libertem Angela Davis”, que deu nome ao documentário, dirigido por Shola Lynch, que traz um retrato do ativismo de Davis até os dias atuais.
Atualmente, Davis é professora emérita do departamento de estudos feministas da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos e desenvolve trabalho intenso sobre o sistema prisional norte-americano.
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