Médica é entrevistada no Dia Internacional de Luta Pela Saúde da Mulher e Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna
(Brasil de Fato, 28/05/2019 – acesse no site de origem)
Desde 1990, a mortalidade materna diminuiu de 143,2 para 59,7 por 100 mil nascidos vivos no Brasil. O decréscimo foi muito maior até o ano 2000, tendo desacelerado muito após essa data. Contudo, ainda hoje, as taxas de mortalidade materna são superiores em 3 a 4 vezes àquela encontrada no conjunto dos países desenvolvidos no início da década de 2010.
Essa redução é constatada pelo Ministério da Saúde, que aponta que em 2017 houve uma pequena redução nas mortes maternas no Brasil: enquanto 65.481 mulheres morreram em idade fértil em todo o território em 2016, em 2017 houve 57.560 óbitos. Para o Ministério, 92% dessas mortes poderiam ser evitáveis com ações efetivas dos serviços de saúde públicos ou privados.
Por ocasião do Dia Internacional de Luta Pela Saúde da Mulher e o Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna, nesta terça-feira (28), o Brasil de Fato entrevistou a médica de família e comunidade e professora da faculdade de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Camila Giugliani. Para ela, a saúde das mulheres melhorou muito nas últimas décadas, mas ainda precisa melhorar. Além disso, o cenário atual aponta para retrocessos na área.
“Vemos uma concentração de políticas na área de saúde materna, o que é muito bem-vindo, mas faltam políticas de saúde verdadeiramente integrais, que abordem com seriedade outros eventos da vida da mulher, fora do período de pré-natal e parto, como anticoncepção, sexualidade e aborto”, aponta a médica.
Não apenas o devido o acesso aos serviços de saúde, que melhorou com a expansão da Estratégia Saúde da Família nos anos 1990 e 2000, proporcionou uma melhoria no cuidado com a mulher, avalia Giugliani. Ela cita também a melhoria das condições de vida da população, incluindo educação, moradia e saneamento básico.
“Contudo, a mortalidade é inaceitável, considerando todo o conhecimento e as tecnologias que temos disponíveis hoje em dia. Outro exemplo atual é a persistência de um problema de saúde pública que já deveria ter desaparecido: a sífilis congênita, que segue com uma incidência em torno de 3,5 por mil nascidos vivos. A vulnerabilidade social e as falhas na atenção pré-natal estão por trás disso, e é muito sério constatar um problema como esse em pleno século 21”, constata.
Em sua avaliação, o congelamento dos gastos com saúde e educação por 20 anos, por meio da Emenda Constitucional 95, aprovada em 2016, é bastante grave e resultará na piora de vários indicadores de saúde por falta de investimentos, conforme mostram os estudos de projeção.
Políticas Públicas no atendimento à saúde da mulher
A professora considera que as políticas que existem, como Rede Cegonha, são muito importantes, mas não dão conta de atender as necessidades das mulheres em uma perspectiva integral. Para ela, “é preciso ampliar a abordagem para contemplar os direitos sexuais e reprodutivos, incluindo questões como sexualidade e aborto, para que as mulheres possam exercer sua autonomia, fazendo suas escolhas de saúde de forma informada e sem recriminação, defende a médica”.
Referente a questão do aborto, Giugliani observa que é necessária uma abordagem menos hipócrita. “Como recomenda a Organização Mundial de Saúde (OMS), precisamos incluir o direito ao aborto como escolha reprodutiva possível, pois todas as pesquisas mostram que o aborto é um evento bastante frequente na vida das mulheres, sendo ele criminalizado ou não”. Para exemplificar, ela cita a pesquisa realizada pela pesquisadora Débora Diniz e colaboradores em 2016, que mostrou que 1/5 das mulheres, ao final da sua vida reprodutiva, já realizou um aborto.
No Brasil, o aborto é permitido por lei em três situações: violência sexual, risco de morte da mãe e anencefalia. Observa-se, entretanto, que nem nessas situações o direito tem sido garantido. Uma pesquisa publicada em 2016, realizada por Madeiro e colaboradores, mostrou que apenas 37 serviços de saúde no Brasil inteiro estão realizando de fato o atendimento do aborto legal. “Isso faz com que as mulheres tenham que peregrinar na busca de um atendimento ou, o que acaba sendo mais frequente, busquem métodos alternativos, na maioria das vezes inseguros”, pontua Camila.
Fora das permissões legais, mulheres continuam abortando de forma clandestina, aumentado os riscos de complicações e morte. “Os dados mundiais mostram que mesmo mulheres que estão usando contraceptivos eventualmente engravidam, ou seja, gestações não planejadas e não desejadas acontecem de verdade, mesmo que a mulher se cuide.” Camila enfatiza a importância de se ter estratégias de prevenção das gestações indesejadas, investir na educação para a sexualidade e no acesso aos métodos contraceptivos, especialmente os de longa duração, isso é realmente fundamental. “Mas mesmo assim, não fugiremos da responsabilidade de prever o direito ao aborto, pois precisamos de uma política de saúde sexual e reprodutiva verdadeiramente integral, levando em conta os problemas de saúde que aparecem na vida das mulheres, a partir dos dados epidemiológicos”.
Principais causas da mortalidade materna
Segundo Camila, as principais causas de mortalidade materna no Brasil são as hemorragias, as doenças hipertensivas, as infecções e as complicações decorrentes de aborto. “Se não estamos conseguindo reduzir mais a mortalidade materna, em parte é porque não estamos abordando o problema do aborto. Na minha avaliação, se reconhecemos esse grande problema de saúde pública e não estamos fazendo nada em termos de legislação e políticas de saúde para enfrentá-lo com seriedade, isso é uma grande irresponsabilidade do Estado”.
Dados de 2012, dados do Ministério da Saúde apontam que 66% dos casos de mortalidade materna ocorreram por causas obstétricas diretas — aborto (4,4%), hemorragia (12,1%), hipertensão (20,6%), infecção puerperal (7%) e outra causas diretas (21,9%) –, 30,9% por causas obstétricas indiretas e 3,2% por causas não especificadas.
Para ela, um Estado laico, como o Brasil, não pode pautar o tema do aborto com base em valores religiosos e morais, mas sim se basear nas evidências. “Estamos muito atrasados com relação aos países mais desenvolvidos. Os dados divulgados pela OMS mostram que 98% dos abortos inseguros ocorrem nos países em desenvolvimento. Por que não avançamos?”, questiona.
A médica também chama atenção para a epidemia de cesarianas no Brasil. De acordo com ela, o fato é extremamente preocupante, visto que as evidências científicas apontam para uma associação entre o parto cesáreo, mesmo se eletivo, e a maior morbidade e mortalidade materna. Enquanto a OMS estabelece em até 15% a proporção recomendada de partos por cesariana, no Brasil esse percentual é de 57%. As cesarianas representam 40% dos partos realizados na rede pública de saúde. Já na rede particular, chegam a 84% dos partos.
Dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) referentes aos nascimentos em 2016 apontam que 55,4% do total de nascidos vivos no Brasil o foram por meio de cesárea. Entre os estados com maiores índices, estão Goiás (67%), Espírito Santo (67%), Rondônia (66%), Paraná (63%) e Rio Grande do Sul (63%). Estudos afirmam que grande parte das cesarianas é realizada de forma eletiva, sem fatores de risco que justifiquem a cirurgia, e antes de a mulher entrar em trabalho de parto.
“Uma das razões por trás do excesso de cesáreas no nosso meio é o medo que as mulheres têm de sofrerem durante o parto, não somente com as dores do trabalho de parto, mas também por desrespeito e maus tratos. A violência obstétrica, segundo pesquisas recentes, infelizmente faz parte do cenário de assistência ao parto no Brasil, com taxas de ocorrência de 25% em nível nacional. Isto é gravíssimo”, denuncia Giugliani.
A professora de medicina pontua que o Brasil poderia estar muito mais avançado em termos de saúde sexual e reprodutiva, mas o país segue na contramão das recomendações da OMS. “Não só não estamos avançando nessa questão, como estamos à beira de retrocessos: a Proposta de Emenda Constitucional 25, de 2015, atualmente em tramitação no legislativo, propõe mudar o texto constitucional, adicionando as palavras ‘garantindo a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção’. A mudança, que parece pequena, pode acabar com o direito ao aborto em qualquer circunstância, mesmo em caso de estupro e nas outras situações previstas em lei hoje em dia. Não existe nenhuma justificativa baseada em evidências para tal retrocesso”, conclui.
O Dia Internacional de Ação Pela Saúde da Mulher foi definido no IV Encontro Internacional Mulher e Saúde que ocorreu em 1984, na Holanda, durante o Tribunal Internacional de Denúncia e Violação dos Direitos Reprodutivos, ocasião em que a morte materna apareceu com toda a sua magnitude.
Fabiana Reinholz; Edição: Marcelo Ferreira