‘Para uma mulher negra com sofrimento psíquico, a porta da escola está fechada, mas a do presídio e a do manicômio estão abertas’, diz psicóloga
(O Globo, 06/06/2019 – acesse no site de origem)
O presidente Jair Bolsonaro sancionou, nesta quinta-feira, dia 6, a lei que autoriza a internação involuntária — isto é, sem consentimento — de dependentes químicos. Segundo o texto, não é necessária autorização judicial, mas apenas o aval de um médico. Além disso, nos últimos dois meses, o governo federal tem adotado políticas que priorizam a política de abstinência e o tratamento de pacientes em comunidades terapêuticas . Segundo o psiquiatra e coordenador dos ambulatórios do Instituto de Psiquiatria da USP, Rodrigo Fonseca, tais medidas deixam dois grupos sociais especialmente mais vulneráveis: as mulheres usuárias de drogas e a população LGBT+.
— Acho que existe um risco maior para as mulheres, para os LGBTs, para as pessoas que sofrem algum tipo de estigma ou são mais vulneráveis em questões sociais. Existe um risco de retrocesso para o que acontecia nos anos 1970, 1980 no país, quando muitas pessoas eram internadas por motivos outros que não a saúde mental — afirma Rodrigo. — Os órgãos de controle podem não conseguir fiscalizar se vai ser uma internação adequada ou não.
Na avaliação dele, essas mudanças nas leis vão na contramão das conquistas da reforma psiquiátrica, movimento que culminou com a lei 10.216 de 2006, criando direitos e proteções para as pessoas em sofrimento mental. A reforma estabeleceu a internação em ambiente hospitalar como exceção, e não regra, no tratamento.
Ainda hoje, a identidade de gênero e a orientação sexual são usadas como pretextos para internação, por parentes, de homens e mulheres em comunidades terapêuticas com viés religioso, como as que se propõem à“cura gay”.
Para a assistente social e professora da Escola de Serviço Social da UFRJ Rachel Gouveia, a nova política relacionada a tratamentos psiquiátricos afetará as mulheres de maneira especialmente negativa:
— (Elas serão internadas) Com a justificativa não só de comportamentos desviantes, mas da sexualidade, da pobreza, com o discurso da epidemia do crack, por exemplo. Essas mulheres vulneráveis, principalmente em situação de rua, vão ser internadas em instituições com uso de medicação, prática de abstinência forçada e influência da religião, não como escolha, mas como imposição de modelo de tratamento. E isso é um severo retrocesso na política de mulheres e de saúde mental — destaca a especialista.
A assistente social também ressalta a ruptura do vínculo entre mãe e filho nos casos de mulheres internadas compulsoriamente:
— O “ser mãe” ainda é santificado. Nem todas podem ou devem ser mães. Há a idealização do ser mãe vinculado à vagina, ao útero, à imagem. A mulher tem uma determinada beleza, uma determinada santidade, tem que ser prendada, tem que ser tranquila… isto está bem distante da ideia da loucura. A mulher louca não é só perigosa, ela contesta, não aceita o que está posto, ela é a que transgride. Esta é a mulher louca.
Mulheres são mais diagnosticadas do que homens
Na cidade de São Paulo, nos últimos cinco anos, 327 crianças e adolescentes, em média, foram acolhidos por ano em abrigos, separados dos pais em decorrência do abuso de álcool e outras drogas. Até abril deste ano, 113 crianças foram encaminhadas a essas instituições por este motivo.
Os impactos na saúde mental são diferentes para homens e mulheres. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as mulheres são mais afetadas pela depressão que os homens, por exemplo.
Para a psiquiatra Flávia Fernando Lima, mulheres podem ser mais diagnosticadas com sofrimento psíquico do que os homens porque buscam mais atendimento nas unidades de saúde.
— A própria existência do patriarcado pode causar um sofrimento psíquico. A sobrecarga, a desvalorização no trabalho, a violência doméstica, tudo nos coloca em um lugar de maior vulnerabilidade do que os homens para adoecer. Além disso, há também uma leitura produzida por um estado machista e moralista que nos coloca em um lugar de deslegitimadas, de enlouquecidas a partir do momento que desvaloriza nossa subjetividade. E as mulheres, de um modo geral, procuram mais atendimento psiquiátrico, o que pode ser visto de duas maneiras: pelo sofrimento que elas vivenciam e por uma leitura maior do próprio sofrimento. Muitos homens em condição de sofrimento psíquico acabam não procurando ajuda.
Influências do machismo
Muitas mulheres vivenciam situações de gaslighting, uma prática em que homens as fazem questionar a própria sanidade, o que é uma forma de violência psicológica. Este tipo de atitude reforça estereótipos acerca da insegurança de mulheres e, ao classificá-las como “loucas”, reforça também a proximidade e a suposta familiaridade entre loucura e mulher. Esta relação é antiga, como aponta a psicóloga e sanitarista Melissa de Oliveira:
— Houve uma série de experimentos no campo da medicina que se voltaram às mulheres a partir de estudos dos ossos, do crânio e do sangue, que supunham uma inferioridade do corpo feminino assimilado a uma desordem mental. As questões orgânicas desse corpo foram atreladas à loucura — afirma.
— Acho que, historicamente, ainda é forte na psiquiatria o estigma que coloca a histeria como um rótulo. Isso é herança de uma psiquiatria pré-movimento feminista, anterior aos avanços sociais. É um termo que não utilizamos do ponto de vista técnico, só quando se quer estigmatizar ou rotular uma mulher negativamente.
Para os profissionais, as soluções para diminuir as violências que afetam mulheres em sofrimento mental passam pela formação de quem atua na assistência à saúde.
A psiquiatra Flávia Lima atenta para a necessidade de analisar as pacientes para além dos aspectos e sintomas físicos.
— É necessário produzir formações que possam ir além de um tecnicismo, que formem trabalhadores de saúde que não olhem para as mulheres só em aspectos hormonais e físicos, mas que possam considerar os territórios em que elas vivem e as opressões que vivem. Uma saúde que considere a cultura, os aspectos históricos e sociais. É impossível produzir uma saúde integral sem levar em conta os aspectos sociais. O cuidado em saúde, incluindo a psiquiatria, ainda é um cuidado e um olhar que estereotipa as mulheres e que pode “medicalizar” comportamentos que fujam da norma estabelecida, fazendo uma leitura biomédica de experiências que são muito sociais.
De acordo com Rodrigo, é importante que o médico consiga identificar o quanto as ideologias podem afetar ou influenciar a tomada de decisões enquanto profissional.
— O desafio atual do psiquiatra é conseguir ser técnico o suficiente para não ser contaminado por ideologias tanto de um lado quanto de outro. O psiquiatra é uma pessoa central para se sensibilizar e pensar o quanto a conjuntura pesa na caneta dele. Não podemos ser instrumentos do abuso.
Melissa também destaca que as instituições psiquiátricas afetam mulheres de forma diferente de acordo com a raça e a classe social de cada uma.
— O presídio tem cor e classe social. O manicômio também. É uma maioria de homens negros e pobres. E, quando olhamos as mulheres, vemos que também são negras e pobres. É importante saber que o Brasil tem uma história que relaciona psiquiatria e raça. Baseado em ideais eugênicos e racistas, afirmou-se na psiquiatria que pessoas negras são agressivas. Para uma mulher negra com sofrimento psíquico, a porta da escola está fechada, a do trabalho e a da vida amorosa também, mas a do presídio e a do manicômio estão abertas.
Para Rachel Gouveia, o feminismo tem aproximações com a luta antimanicomial:
— A gente percebe que as mulheres lésbicas, negras e transexuais sempre estiveram institucionalizadas. Prostitutas, mulheres pobres ou em situação de rua também. As mulheres são diagnosticadas a partir de uma ideia do que é “ser mulher” e, quem se desvia desse modelo é, de certa forma, vista como “doente”. A gente não pode homogeneizar a loucura ou o louco. Quando pensamos no feminismo e na luta antimanicomial, vemos quem são as pessoas controladas pelas instituições. Nossas singularidades são forjadas e capturadas para um padrão de normalidade que vai moldar o que é “ser mulher”.
Estagiária sob supervisão de Renata Izaal