Depois do abuso, a peregrinação

04 de abril, 2019

O consultório 15 do Centro de Saúde-Escola Samuel Pessoa, no distrito paulista de Butantã, era modesto. No pequeno espaço, não muito maior do que uma maca, a médica Ana Flávia D’Oliveira, uma residente de Psicologia e uma de Medicina da Família atendiam a primeira paciente do dia. A consulta durou mais de uma hora, e as finas paredes beges não conseguiam abafar o som da conversa que revelava a confiança estabelecida entre as quatro mulheres. O vínculo criado pela equipe do programa Conflitos Familiares Difíceis (Confad) é justamente o que faz com que ali, no singelo consultório 15, muitas pacientes consigam falar pela primeira vez sobre suas histórias de violência doméstica.

(Não Me Kahlo, 04/04/2019 – acesse no site de origem)

O número de mulheres que precisam de atendimento após serem vítimas de violência pode parecer extravagante. Em 2016, o Ministério da Saúde cravava quase 178 mil casos – quantidade 106% maior do que o de homens atendidos pela mesma razão. Mas essa é só uma parcela da real quantidade de casos de violência atendidos. Ainda que oito a cada dez mulheres sobreviventes de abusos desenvolvam doenças crônicas, a violência doméstica ainda é uma epidemia invisível e indiscutida no sistema de saúde.

“As vítimas de violência têm acesso ao SUS praticamente como qualquer pessoa da população brasileira. Mas a tendência é que o problema da violência não seja desvelado”, afirmou Ana Flávia em 2017. Ela é coordenadora do Confad, programa de atendimento especializado a meninas e mulheres em situação de violência. Um estudo realizado por ela em 19 serviços de atenção básica de São Paulo sustenta a informação. Quase metade das pacientes dessas unidades havia sofrido violência física e/ou sexual por parceiros íntimos, e um quarto havia sido abusada por outros agressores. Os registros de violência, porém, só apareciam em 3,8% dos prontuários.

A médica Maria Patroclo, do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, na Tijuca, Rio de Janeiro, lembrava-se do caso de uma mulher que deu entrada no serviço na 40 semana de gravidez, com um sangramento intenso. O feto morreu ainda no útero e, depois do parto, Patroclo participou da investigação do óbito. “Eu me deparei com a história de um companheiro que a agredia fisicamente, arrastava pelas ruas e chutava seu abdome grávido”, contou a médica. “Mas isso não está descrito no prontuário da obstetrícia como uma possível causa desse bebê ter morrido dentro da barriga dela.”

Em geral, as mulheres não dividem seu histórico de abuso espontaneamente. Segundo Carmen Lucia Luiz, coordenadora da Comissão Interssetorial de Saúde da Mulher do Conselho Nacional de Saúde na época, a violência contra a mulher é tão banalizada na sociedade machista que acaba sendo invisível para as próprias sobreviventes. “Os agravos resultantes da violência muitas vezes não são diagnosticados, porque as mulheres também não sabem dizer que sofrem abusos e se acham merecedoras deles”, afirmou.

A técnica em Segurança do Trabalho Luz Dias* se consultou com diversos profissionais por causa das dores fortíssimas que passou a sentir no abdome depois que seu marido começou a agredi-la. Alguns dos médicos com quem se consultou perguntavam se estava tudo bem em casa, mas ela dizia que sim, em parte por vergonha. “Para mim a resposta era ‘tudo bem’, porque eu não conseguia enxergar que era violência doméstica”, contou Luz. Com o tempo, ela acabou dando aos médicos informações que permitiram que eles identificassem que seu marido era abusivo.

Assim como Luz, a maior parte das mulheres só irá revelar seu histórico de abuso quando se sentir acolhida por um(a) profissional, que precisa de tempo para ouvi-las e criar um vínculo. “Às vezes ela dá várias voltas até chegar no ponto, mas você não pode apressar a mulher. Tem que saber esperar”, afirmou Ana Flávia.

A Organização Mundial da Saúde publicou em 2013 um relatório com várias recomendações para a abordagem da violência doméstica nos serviços de saúde mundo afora. Ana Flávia, que participou do estudo que deu origem ao documento, já utilizava um protocolo muito semelhante à proposta da OMS no Confad. Em 2016, a metodologia foi incorporada pelo Ministério da Saúde aos Protocolos de Atenção Básica, de abrangência nacional.

O manual do Ministério instrui o profissional a investigar a existência de históricos de violência quando identificar nas queixas da mulher sinais de alerta, como distúrbios gastrointestinais, dores crônicas, depressão ou transtorno do estresse pós-traumático.“Uma boa forma de fazer isso é perguntar como estão as coisas em casa”, exemplificou Ana Flávia. O profissional deve registrar o abuso e levá-lo em consideração ao fazer o diagnóstico e planejar o tratamento. Além disso, deve apresentar à mulher informações sobre a rede de assistência e ajudá-la a perceber as conexões entre a violência e seus problemas de saúde.

Mas, segundo Ana Flávia, o ritmo produtivo intenso de um modelo de saúde “entregue às Organizações Sociais”, instituições privadas que gerem alguns serviços, impede a escuta qualificada necessária para a investigação desse histórico. “Os profissionais têm que atender quatro pessoas por hora para mostrar produtividade. Mas leva pelo menos 40 minutos para atender uma mulher que sofreu violência”, explicou.

A precarização das condições de trabalho dos profissionais, terceirizados pelas OSs, impacta diretamente o atendimento. “Eles são explorados. Não têm estabilidade nem direitos, e a rotatividade nos serviços é muito grande”, criticou Regina Helena Simões, Doutora em Saúde Pública. A enfermeira Stephanie Pereira, que já trabalhou no Confad, ressaltou que essa alta rotatividade coloca em risco a continuidade do atendimento. “A nossa tecnologia é o vínculo, é o afeto criado nos encontros”, argumenta. “A rede é feita de pessoas. Dependendo dessa mudança, ela se desestrutura como um todo.”

Camila Sixel, que atuava como residente de Enfermagem em 2017, também começou a frequentar diversos serviços de saúde no Rio de Janeiro depois que seu marido se tornou violento. O abuso foi o disparador de uma série de problemas de saúde, mas a questão da violência só foi levantada por um profissional, na Clínica da Família Felippe Cardoso, na Penha. “Ele não perguntou especificamente sobre violência, mas sim o que estava acontecendo para eu ficar tão doente, com herpes direto, muita infecção urinária”, explicou a jovem. “Eu fiquei um pouco resistente, porque é difícil falar sobre isso.”

O médico fez a conexão entre o estresse de Camila e as doenças que ela desenvolveu, mas não procurou saber como a situação afetava sua saúde mental. Ela tampouco foi encaminhada a outros profissionais da equipe, como uma assistente social, ou a serviços da rede especializada. A jovem só descobriu que estava com depressão depois de ser encaminhada por uma colega de trabalho ao Centro Especializado de Atendimento à Mulher Chiquinha Gonzaga, na Praça Onze, onde se consultou com uma psicóloga. Mais de um ano depois, quando seu ex começou a ameaçá-la e a tentar desqualificar sua denúncia pelo fato de ela tomar remédios para a depressão, Camila voltou à Clínica da Família para procurar ela mesma uma assistente social que pudesse ajudá-la.

Atendidas por profissionais que aprendem a correr contra o tempo, as mulheres em situação de violência são muitas vezes consideradas “pacientes incômodas”, de acordo com Regina, e podem ser apelidadas pejorativamente de poliqueixosas, chatas, carentes ou histéricas.“Seus sintomas psíquicos não são vistos ou considerados. Elas são apenas as ‘pegajosas’”, diz a sanitarista. Embora ressalte que existem profissionais que acolhem as mulheres, Regina avalia que, de forma geral, os serviços tratam isso de maneira “muito preconceituosa e discriminatória”.

Como o histórico de violência raramente é detectado pelos profissionais, é comum que as sobreviventes se tornem “super-frequentadoras” do sistema de saúde. Em busca de uma solução para suas dores e doenças, que não pode ser alcançada sem que a violência seja identificada, elas trocam de médicos constantemente e acabam peregrinando por vários serviços.

“Já fui várias vezes na Balbino e na Clínica da Família para tratar a herpes, e usei o plano para tentar tratar numa imunologista”, contou Camila, que também precisou buscar tratamento psicológico e psiquiátrico para sua depressão. Luz, que tinha plano de saúde na época em que buscou atendimento por causa de suas misteriosas dores abdominais, afirmou que também “corria hospitais”, mas que, por dez anos, ninguém conseguiu diagnosticá-la.

As especialistas ouvidas pela reportagem acreditam que o mau atendimento às mulheres em situação de violência tem sua raiz na formação recebida pelos profissionais ainda nas universidades. Os profissionais têm uma formação biomédica, que foca no diagnóstico de patologias cuja causa está no corpo físico. “As questões psicológicas, subjetivas e sociais que perpassam o processo saúde-doença simplesmente não são vistas”, afirma Regina. Como resultado, a violência doméstica é invisibilizada.

No modelo biomédico, o atendimento se resume ao que parece mais grave no momento, como uma dor. “Você não consegue fazer um diagnóstico mais amplo da saúde da pessoa”, criticou Layla de Carvalho, pesquisadora de políticas de saúde da mulher. Stephanie explicou que os profissionais pedem uma série de exames e prescrevem medicamentos às pacientes sem levar em conta o que está acontecendo em suas vidas. Carmen Lucia ressaltou que as mulheres são quem mais consomem remédios na atenção básica. “Elas têm as angústias advindas de sua condição social, suas opressões de gênero, caladas por medicamentos”, critica a conselheira de saúde.

Mesmo quando a violência é identificada, a formação falha dos profissionais faz com que ela raramente seja levada em consideração na hora do diagnóstico e da prescrição de tratamentos. Maria Cecília Minayo, do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, afirmou que os profissionais enxergam a violência como uma questão da vida íntima ou de competência da polícia. Para eles, o histórico de abusos de suas pacientes não é algo pertinente ao fazer médico.

Às vezes, as suspeitas do profissional de que as queixas relatadas são “invenções da cabeça da mulher” podem até aumentar quando ele se dá conta do histórico de abuso da paciente, segundo aponta um artigo de Ana Flávia. Esse despreparo dos serviços para lidar com a violência resulta em diagnósticos imprecisos e tratamentos ineficazes, que perpetuam o sofrimento da mulher, cujas demandas não encontram respostas.

Luz me contou que fez diversos exames na tentativa de descobrir o que a adoecia. Alguns eram dolorosos, mas um em especial ela definiu como “apavorante”: a histerossalpingografia, radiografia do útero feita com injeção de contraste. “Eu ficava internada no hospital, vivia dando entrada em emergência. Mas eles me viravam de cabeça para baixo e diziam: ‘ela não tem nada’. E eu andando curvada de dor”, lembrava.

“Como a violência está invisibilizada no setor de saúde, evidentemente que, na hora de você fazer seu planejamento de gastos, isso acaba não tendo a devida priorização”, destaca Maria Patroclo. Ironicamente, a falta de recursos específicos para a assistência às sobreviventes acaba gerando custos altíssimos ao sistema de saúde, já que a ineficácia do atendimento contribui para que as mulheres se tornam super-frequentadoras dos serviços.

Dados do Ministério da Saúde mostram que a violência contra a mulher custou R$5,3 milhões apenas em internações em 2011. E, segundo estimativas da ONU, essa violência causa uma perda anual de 10,5% do PIB brasileiro. Durante palestra na Câmara Municipal de Salvador em 2011, Eliana Calmon, então corregedora nacional de justiça, afirmou que a estimativa se refere aos gastos com o sistema de saúde no atendimento às vítimas, à movimentação do aparelho judicial e à interrupção do trabalho das mulheres agredidas.

Ana Flávia acredita que a dificuldade de se incluir a perspectiva de gênero, raça e direitos humanos nas faculdades e nas profissões de saúde é um dos grandes desafios para que a violência se torne visível nos serviços. Para ela, o contato dos estudantes de Medicina, Enfermagem e Psicologia com esses temas é “infinitamente menor” do que o necessário. “Sou professora da faculdade de Medicina e percebo que os meus alunos precisam dessa formação, mas mexer nos currículos não é simples. Você tem disputa de poder interna às faculdades”, afirmou a médica.

A falta da perspectiva de gênero faz com que o atendimento às mulheres em situação de violência seja atravessado por estereótipos machistas e pelo julgamento moral de seus relatos. Comentários como “não sai da violência, porque gosta”, por exemplo, são comuns, de acordo com Stephanie. Ela sublinha que, ao se deparar com julgamentos como esse nas instituições que deveriam apoiá-las, as mulheres acabam tendo ainda mais dificuldades para romper o ciclo de violência.

“A VIOLÊNCIA NA SAÚDE É UMA CAIXA DE PANDORA: NINGUÉM QUER ABRIR”

Stephanie Pereira, enfermeira

Stephanie ressalta que a violência é um problema muito complexo e que os profissionais da saúde não têm como dar conta dele sozinhos. “O profissional tem que conhecer a rede de atendimento especializada.” Mas, segundo Ana Flávia, isso não acontece. Ela concluiu que, embora a notificação de violência nos serviços esteja aumentando, ela precisa vir acompanhada de políticas de treinamento e capacitação permanente para que os profissionais possam fazer uma escuta qualificada. Stephanie concorda que é “extremamente difícil” ouvir as histórias de violência. “Tem coisas que vão mexer com a nossa história pessoal, principalmente para nós, profissionais mulheres”, assinalou a enfermeira. “A gente tem que saber como vai lidar com isso também, na nossa vida pessoal.”

Na época de nossa conversa, Ana Flávia, Stephanie e outras pesquisadoras ligadas à Universidade de São Paulo vinham realizando oficinas de treinamento para profissionais de saúde utilizando um jogo chamado “No Lugar Dela”. Criado por um coletivo feminista de Washington, ele foi adaptado à realidade local pelas brasileiras, com base na mistura de histórias reais atendidas no Confad. O jogo é formado por até oito protagonistas, que participam ativamente, e por suas “sombras”, que só podem observar. “Tem várias estações, que são os serviços de saúde, a delegacia, a família, a vizinhança, os amigos, a igreja, a escola, toda essa rede formal e informal”, explicou Stephanie. “O protagonista vira essa mulher e vai tomando as decisões frente à situação da violência.”

Depois de cada partida, é feito um bate-papo entre os participantes para que possam refletir juntos sobre a questão da violência doméstica e sexual. “Os protagonistas falam principalmente da dificuldade de fazer essas escolhas e da sensação de solidão durante o jogo”, afirma Stephanie. Já as sombras, segundo ela, confessam ter muita dificuldade para manter suas opiniões para si e respeitar as escolhas das personagens. Apesar da angústia coletiva, todos seguem as regras e, assim, passam a compreender melhor os desafios enfrentados por suas pacientes e os limites de seus papéis como profissionais.

Hoje, a falta de treinamento na maior parte dos serviços faz com que a violência doméstica e sexual seja classificada por pesquisadoras de saúde como uma “caixa de pandora”: por medo do que pode sair caso seu conteúdo seja liberado, ninguém quer abrir. Mas, com iniciativas como a de Ana Flávia e Stephanie, a expectativa é de que pouco a pouco o receio diminua e as milhares de mulheres em situação de violência possam começar a ter o atendimento que não apenas merecem, como precisam. “Quando eu treino, as pessoas falam: ‘nossa, apareceu uma epidemia de violência’”, comentou Ana Flávia. “Eu respondo: ‘Não. Você que começou a ver.’”

*Nome alterado a pedido da mulher para preservar sua identidade.

Reportagem originalmente apresentada em julho de 2017, como parte do trabalho de conclusão de curso “Quando a violência adoece as mulheres”. As estatísticas foram atualizadas de acordo com os dados mais recentes. A parte teórica do trabalho pode ser acessada aqui.

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