‘É preciso combater a masculinidade tóxica’, diz médico vencedor do Nobel da Paz

26 de setembro, 2019

Em visita ao Brasil, ginecologista congolês Denis Mukwege convidou homens a se engajarem na luta contra a violência contra a mulher.

(G1, 26/09/2019 – acesse no site de origem)

O médico congolês Denis Mukwege, um dos vencedores do prêmio Nobel da Paz de 2018, defendeu, em visita ao Brasil, que os homens se engajem no combate à violência contra a mulher e atuem para acabar com a “masculinidade tóxica”.

O ginecologista segue com uma intensa agenda internacional para denunciar a utilização do estupro como arma de guerra em todos os continentes.

“Creio que é muito importante que os homens se engajem na luta contra a violência sexual. Hoje acredito que temos que ir à fonte [da desigualdade entre homens e mulheres]. Temos uma responsabilidade compartilhada na nossa sociedade. É preciso eliminar a masculinidade tóxica, que leva a catástrofes”, afirmou o ginecologista.

Mukwege, que cuida de mulheres vítimas de violência sexual em um hospital na República Democrática do Congo, recebeu o G1 no hotel onde estava hospedado, em São Paulo, para participar de conferência do projeto Fronteiras do Pensamento, em agosto.

“Quando você analisa de mais perto, percebe que mesmo em uma sociedade em paz o estupro é usado [como arma] e os criminosos são protegidos pela lei do silêncio. Quando a guerra começa, não tem mais lei, não tem mais fé, isso se torna escandaloso”, observa o médico de 64 anos.

Na avaliação dele, é preciso atuar para que as sociedades não deem mensagens fortes de que o homem não é igual à mulher.

“A gente sabe muito bem que a mulher pode trabalhar a mesma quantidades de horas que um homem, pode ter um mesmo diploma com a mais alta nota, mas ela terá sempre um salário inferior ao salário de um homem.”

O médico também cita exemplos da China e de países africanos.

“Na China, fetos do sexo feminino são simplesmente liquidados. Quando uma mulher é obrigada a abortar quatro vezes até que na 5ª vez ela tenha um feto masculino. É esse feto que a gente deixa. Qual é a mensagem que fica? É a de que as outras quatro [mulheres] não valem nada. Ou na África, quando uma mulher que tem três, quatro, cinco meninas, e é abandonada pelo marido porque não teve um menino”, observa.

Educar e ajudar a quebrar o silêncio

Para mudar essa situação, o médico acredita que o homem pode contribuir ao ajudar a “educar os filhos desde o berço para que possam compreender que as meninas e os meninos são todos crianças e que são iguais”.denis mukwege

“Não me incomodo de poder pensar que a mulher é o futuro da nossa humanidade. Somos todos nascidos de uma mulher, nós temos irmãs, temos esposas, temos mãe.”

Mukwege também acredita que o homem pode ajudar as vítimas a quebrar o silêncio e buscar justiça.

“A melhor maneira de evitar a violência sexual em uma sociedade em paz é quebrar o silêncio. A partir do momento em que os criminosos sabem que não ficarão impunes e que a mulher vai denunciar, eles vão pensar duas vezes antes de cometer esse ato.”

Estupro como arma de guerra

Mulheres e crianças são fotografadas no Hospital de Panzi, na República Democrática do Congo, em 8 de julho de 2013 — Foto: Junior D.Kannah / AFP

Nas guerras, a violação dos direitos da mulher se agrava e o corpo feminino passa a ser utilizado como um “verdadeiro campo de batalha” em conflitos em vários continentes.

“O estupro é uma arma de guerra muito forte, porque ela destrói a capacidade de toda uma comunidade de poder se unificar. Destrói o tecido social, todas as bases sobre as quais uma sociedade se estabelece”.

Mukwege, que ganhou o Nobel com a ex-escrava sexual do Estado Islâmico Nadia Murad, acompanha o sofrimento de mulheres que são violentadas rotineiramente na guerra civil na República Democrática do Congo, que começou na década de 90.

O hospital de Panzi, em Bukavu, no leste do país, tem capacidade para acolher até 10 mulheres por dia. Inicialmente, previa-se que ele acolhesse parturientes, mas, desde a sua abertura em 1999, recebe vítimas de estupros extremamente violentos.

“São atos de barbárie para mostrar o poder, a força [do agressor]. Quando o estupro acontece em público é muito mais para humilhar a comunidade. É uma maneira de traumatizar não só a vítima.”

República Democrática do Congo — Foto: Juliane Monteiro/ G1

Ser médico em tempos de guerra

Integrante das forças armadas congolesas é fotografado ao lado de um prédio queimado na cidade Yumbi, na República Democrática do Congo, em 1º de fevereiro de 2019 — Foto: Alexis Huguet / AFP

Mukwege conta que decidiu ser médico ainda menino, aos 8 anos. Ele costumava acompanhar o pai, que era pastor, na visita a doentes do vilarejo em que morava. Certo dia, ele observou que o pai, após uma oração feita por um menino com febre alta e dificuldade para respirar, devolveu a criança para o colo dos pais.

“Senti como se meu pai não tivesse terminado a sua missão, porque, quando estava doente, não só rezava por mim, mas também me dava medicamentos”, conta. O pai se justificou dizendo que não era médico.

“Papai, eu serei médico”, disse. “Darei assim os medicamentos e o senhor vai rezar. Assim, a gente partilhará a tarefa”, lembra.

Desde, então, ele orientou os estudos com esse objetivo, mas a guerra teve um impacto brutal em seu trabalho.

Em 1996, uma coalizão dos exércitos de Ruanda, Burundi e Uganda atacou o leste da RDC. Um dos primeiros alvos foi o hospital em que Mukwege trabalhava no vilarejo de Lemera. Após se especializar em ginecologia e obstetrícia, ele tinha organizado o acolhimento às gestantes, que, até então, frequentemente morriam antes mesmo antes de chegar ao centro médico.

“Os meus pacientes foram mortos nos seus leitos, os funcionários que não conseguiram fugir também. Isso foi muito duro para mim. É algo que carrego até hoje. O hospital foi destruído”, conta.

O ataque obrigou o médico a se exilar no Quênia. Depois ele voltou a Bukavu para começar montar o hospital de Panzi. Em 1998, as duas tendas que tinham sido montadas com material doado pelo Unicef foram destruídas. Um ano depois, com ajuda do governo sueco e de organizações internacionais, o hospital voltou a operar.

Hospital de Panzi funciona em Bukavu, na República Democrática do Congo — Foto: Alain Wandimoyi / AFP

“Tínhamos começado com a esperança de que tomaríamos conta de mulheres que vinham dar à luz, mas, infelizmente, não foi o caso. A primeira pessoa de que cuidamos procurou ajuda após um terrível ato de barbárie, um estupro com extrema violência. Nunca tinha visto isso antes”, lembra.

Mukwege seguiu fazendo denúncias em instituições internacionais, denunciando ações do governo, traições e ataques contra a democracia. Em 2012, ele escapa de uma tentativa de assassinato, que o obriga a deixar seu país por um curto período.

Violência extrema

Pacientes vítimas de estupro são atendidas em enfermaria pós-operatória no hospital Panzi em Bukavu, na República Democrática do Congo. Imagem de 12 de novembro de 2009 — Foto: Adia Tshipuku / AFP

No hospital, os funcionários já cuidaram de bebês de seis meses até mulheres com mais de 80 anos. Do ponto de vista médico, os danos variam de acordo com a faixa etária.

Entre crianças e as mulheres mais idosas, mesmo se não for utilizado nenhum objeto ou arma, apenas a penetração já é muito traumática. Entre as crianças, por causa da imaturidade, são comuns graves problemas na região do períneo, na bacia, no reto e, em alguns casos, o ataque pode ser fatal. Nas idosas, por causa da atrofia genital são comuns ferimentos graves.

“Já entre as mulheres em idade adulta, são comuns ferimentos provocados por objetos cortantes, armas de fogo ou pela introdução de produtos corrosivos, como a soda cáustica, que é muito utilizada no nosso vilarejo para a fabricação de sabão”, afirma o médico.

Rejeição das famílias

O médico conta que, inicialmente, o hospital oferece ajuda médica, mas a equipe se deu conta rapidamente de que as vítimas precisavam de ajuda psicológica e de apoio para superar o isolamento social que passam a enfrentar.

“Elas se encontram psicologicamente muito destruídas. São consideradas como impuras. São rejeitadas pelas suas famílias, pelos seus maridos. Discriminadas, ficam no isolamento social”, afirma.

Para resolver o problema do isolamento social, a equipe passou a encaminhar as vítimas mais jovens para a escola ou para aprender uma profissão que possibilite que tenha a sua renda. Elas aprendem, por exemplo, a fazer sabão, óleos essenciais ou trabalhar com couro. Assim, elas voltam transformadas para a comunidade.

“Dar autonomia econômica para mulher é a melhor maneira de fazer a reinserção social da mulher. Hoje temos mulheres que são advogadas, enfermeiras, psicólogas. Quando retornam para o vilarejo, com um diploma universitário, é muito mais a comunidade que precisa dela do que o contrário. A reinserção se faz automaticamente”.

Importância da justiça

Médico congolês Denis Mukwege participa de encontro com o presidente francês Emmanuel Macron, em Paris, em 23 de agosto de 2019 — Foto: Philippe Lopez / AFP

Porém, para superar o ciclo de sofrimento provocado pela violência, as mulheres ainda esperavam uma coisa: a justiça contra os estupradores.

A equipe de Mukwege passou a contar com a ajuda de uma equipe de advogados e juristas para preparar laudos e documentos necessários para ir ao tribunal para defender os direitos dessas mulheres.

“Ganhamos alguns processos, mas isso não satisfaz ainda, porque frequentemente são processos contra os peixes pequenos. Para colocar fim a essa prática é preciso atacar os peixes grandes, que são os organizadores os instigadores do uso do estupro como arma de guerra”.

Por Letícia Macedo

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