Ane Mickaelly pode ser um dos rostos de mulher LGBTQ+ para ilustrar um doloroso número: a alta taxa de violência contra mulheres lésbicas e bissexuais, que fica clara no Atlas da Violência, lançado pelo Ministério da Saúde, na quarta (5).
(Universa, 12/06/2019 – acesse no site de origem)
Em janeiro do ano passado, a garota, de 22 anos, foi esfaqueada por José Roberto Brito Monteiro. O réu foi condenado a 14 anos e três meses de prisão em março deste ano.
O Ministério Público sustentou que Ane tinha um relacionamento amoroso com a filha de José. Segundo o MP, o pai não aceitava o relacionamento da filha com a outra garota. Dois meses antes de morrer de maneira violenta, Ane publicou no Facebook que era perseguida pelo homem devido à sua orientação sexual.
“Que homofóbico tolo este pai que aceitou ver a filha ser maltratada por um homem, mas não de deixar ela ser feliz só porque seria feliz com uma mulher”, escreveu, se referindo a um antigo relacionamento de sua parceira.
Segundo o Atlas da Violência, em mais de 70% dos casos de violência contra LGBTQ+ (tanto homens quanto mulheres) ocorridos em 2015, último ano do levantamento, os autores eram do sexo masculino.
“Se for para ser, ninguém vai segurar ou controlar. Quando se ama sempre se dá um jeito e a homofobia não vai ter vez”, escreveu a vítima. A mensagem, de novembro de 2017, é concluída com a hashtag: #HomofobiaEhCrime. Ane foi assassinada dois meses depois.
Apesar disso, na sentença foi descartado a hipótese de um lesbocídio, ou crime de ódio, com base em argumento da defesa.
Segundo o condenado, Ane já estaria causando desavenças na família. Ele diz que a matou porque se irritou com uma confusão em que a vítima disparava fogos de artifício perto da sua casa. Segundo testemunhas, ele saiu atrás dela com um facão; a vítima se escondeu em um matagal e foi morta com facadas.
Apesar de testemunhas falarem que as duas supostamente viviam um relacionamento, a suposta parceira de Ane negou o namoro ao tribunal.
Na conclusão do caso, o réu foi condenado pelo agravante de crime torpe e o direito a responder em liberdade. Está marcado para o próximo mês um recurso em 2º grau para julgar o processo. Já no Facebook, uma amiga de Ane deixou escrito: “homofobia até quando?”
Violência contra lésbicas aumentou no Brasil
O número de registros de violência contra mulheres lésbicas e bissexuais foi maior do que os registros de violência registrados contra homens homossexuais e bissexuais no país. É o que indicam dados do Ministério da Saúde divulgados na quarta (5) pelo Atlas da Violência, estudo coordenado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Segundo o Atlas, as mulheres homossexuais, como Ane, e bissexuais foram as maiores vítimas de agressões violentas entre a população LGBT nos anos de 2015 a 2016. Os dados apontam que 51,4% das vítimas eram das lésbicas em 2016, e 8,1% eram mulheres bissexuais, enquanto 37,8% eram das vítimas eram gays do sexo masculino no mesmo ano e 2,7% homens bissexuais.
Esses números são os únicos a dar um “rosto” às vítimas de violência contra pessoas LGBTQ+ no país. O Disque 100, ligado ao governo federal, não revela qual o sexo e a orientação sexual de quem faz denúncias de crimes homofóbicos.
Já os dados do Ministério da Saúde, feitos em hospitais e centros de atendimento, mostram que as as mulheres são as vítimas que mais acrescem os registros de violência contra essa população.
Um apagão que diculta os dados
O elaborador do relatório, Daniel Cerqueira, chama de “apagão” a falta de dados e conhecimento sobre o tamanho da população LGBTQ+ no Brasil. Por esse motivo, ele afirma que há uma violência “invisível”.
É o caso de Ane, que não foi classificado como crime de ódio. O resultado é uma dificuldade da população e das autoridades em reconhecer uma realidade de intolerância contra LGBTQ+ em curso no país.
“O que a gente percebe, cruzando os dados, é que todos os casos de violência desse tipo aumentaram nos últimos anos. Mesmo com dados administrativos, que temos que ver com cautela, já acenderam uma luz amarela e depois uma vermelha”, pondera o pesquisador do Ipea.
Marcos Candido