Gerente de programas da ONU Mulheres, Joana Chagas chama atenção para cortes em recursos para políticas públicas e para a situação de refugiadas
(O Globo, 28/09/2019 – acesse no site de origem)
RIO – Há 18 anos na ONU Mulheres , Joana Chagas é especialista em igualdade de gênero e direitos humanos das mulheres . Em entrevista durante a XVI Conferência de Segurança internacional do Forte de Copacabana, ela falou sobre os desafios da questão de gênero no Brasil e sobre como o protagonismo da mulher costuma ser colocado em segundo plano em conflitos: “Mulheres em situações de guerra e conflito são somente vistas como vítimas, como pessoas a serem protegidas. As mulheres também estão fazendo a paz”. Ela contou ainda que “a ONU Mulheres foi chamada a participar da resposta humanitária na fronteira porque existem jovens e adolescentes venezuelanas nas ruas se prostituindo”.
Qual o maior desafio da ONU Mulheres no Brasil?
O Brasil é um país que ainda tem números muito baixos de participação das mulheres na política, nos três poderes, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. O Brasil também tem uma participação muito pequena de mulheres no setor econômico, nas ciências exatas por exemplo. Elas ainda recebem menos que os homens e ainda são as responsáveis pelo trabalho de cuidado. Na área de enfrentamento à violência os dados estão aí: o Brasil é o quinto país de feminicídios no mundo, é responsável por 40% das mortes de mulheres na América Latina, são 50 mil estupros por ano. São números de proporções quase iguais aos de países de conflitos. Mas o Brasil também é um país de dimensões continentais, o que deve ser levado em consideração. E na área de paz e segurança temos baixa representação das mulheres nas Forças Armadas, elas participam das tropas de paz mas ainda de forma muito pontual. Tem tido avanços em todas as áreas nos últimos 20 anos, mas ainda está muito longe do ideal.
E onde houve avanços?
Existem estudos do Ipea que mostram que nos lugares onde existem os serviços e onde eles funcionam minimamente, foi possível conter em 10% as mortes de mulheres, os feminicídios. Nos últimos 20 anos houve investimento, políticas públicas. Nesse período, teve a aprovação da Lei Maria da Penha (sancionada pelo ex-presidente Lula, em 2006), a lei do feminicídio (que entrou em vigor em 2015, no governo Dilma Rousseff), a criação da Casa da Mulher Brasileira (inaugurada também em 2015). É um país que tem demonstrado desde 1988, desde o processo de democratização, um avanço nas políticas e legislações.
Houve retrocesso no governo atual?
Houve. A gente sabe que há menos recursos para as políticas públicas para as mulheres, mas não sabemos qual o impacto disso. Mas só o fato de ter havido cortes no orçamento, nas políticas sociais em geral, e especificamente nas politicas públicas para as mulheres, representa um retrocesso.
Na questão de paridade de representação, o Brasil avançou?
A gente não tem ainda no marco legal brasileiro nada que fale de paridade. A única coisa que temos são leis de cotas para cargos representativos de 30%, é uma lei de 1992 que está sendo discutida no Congresso Nacional para ser revisada.
Revisada como?
Em cada eleição se avançava um pouco. Essa lei fala por exemplo que as mulheres devem ter uma porcentagem do fundo eleitoral e do tempo de campanha. Nas últimas eleições o TSE julgou que, como a cota era de 30%, as mulheres deveriam ter acesso a 30% dos fundos e do tempo, o que equalizaria a cota de representação à de acesso a esses fundos. E dias atrás, o TSE de novo julgou que as chapas que não cumpriram com essa cota poderiam ser cassadas. Você vê que no início era uma lei que não existia e não era cumprida, não existiam sanções; depois o TSE, em um determinado momento, disse que deveria ser cumprida, mas ainda sem sanções; e finalmente as sanções estão acontecendo. Mas agora vemos que existe uma resistência ao cumprimento dessa lei no Congresso Nacional, uma discussão que é importante que a sociedade acompanhe.
Como a questão de gênero entra no debate sobre segurança internacional?
É maravilhoso ter pela primeira vez uma mesa sobre gênero em uma conferência sobre segurança internacional. É um tema que não envolve mulheres tradicionalmente, nem na academia, nem na pesquisa, nem nas estruturas estatais. E foi um tema que surgiu como demanda do público, e não dos organizadores. E é importante que ele seja mantido porque todos os temas de segurança internacional dizem respeito às mulheres. Você não precisa ter um painel separado, é bom que tenha dessa vez, para introduzir, mas a gente espera que no futuro cada mesa tenha uma pessoa especialista em gênero, que possa dizer a partir do assunto abordado como aquilo impacta de forma diferente homens e mulheres. Um dos dados que temos é que a mínima a porcentagem de notícias e histórias na mídia sobre as guerras incluem mulheres, e quando elas são citadas, muito raramente são protagonistas dos processos de paz. Mulheres em situações de guerra e conflito são somente vistas como vítimas, como pessoas a serem protegidas, os heróis são sempre os homens. Sim, elas são vítimas, é importante falar sobre isso, mas mulheres também estão fazendo paz.
Como elas são afetadas no processo de refúgio e imigração, por exemplo?
Posso falar do que temos na nossa fronteira com a Venezuela , porque estamos trabalhando lá. São 45% de mulheres e 55% de homens agora. O que a gente tem visto nessa resposta é que as mulheres estão ficando para trás. É prioridade do governo brasileiro a interiorização dos imigrantes, para desafogar a crise em Roraima , que já é um estado remoto, que tem uma fragilidade maior das instituições e ficou numa situação muito mais difícil com esse fluxo.
A ideia é interiorizar voluntariamente venezuelanos que queiram, para outros municípios que disponibilizam vagas. Existem diferentes modalidades de interiorização, por emprego, quando a pessoa já tem uma carta de emprego; por reunião familiar; ou quando algumas igrejas e organizações não governamentais oferecem essa ajuda. Na modalidade de emprego só 10% são mulheres. Por que elas não conseguem emprego? Porque elas estão no papel de cuidadoras de filhos, de mães, de doentes. Elas vão para um lugar onde não conhecem nada e ninguém, não têm emprego, não têm fonte de renda e vão ficar muito mais vulneráveis. E numa situação de maior vulnerabilidade econômica elas também ficam mais vulneráveis à violência e exploração sexual.
O que acontece muito nessas situações humanitárias é o sexo por sobrevivência, são mulheres que se envolvem na prostituição porque não têm outra opção. E aí acabam caindo em redes de exploração e tráfico. A ONU mulheres foi chamada no primeiro momento para participar da resposta humanitária porque existem jovens e adolescentes venezuelanas nas ruas se prostituindo. E se só 10% delas conseguem emprego, isso quer dizer que a resposta não está funcionando.