Especialistas criticam lei que permite à polícia conceder medidas protetivas a vítimas de violência doméstica

11 de abril, 2019

Atribuir tal poder a delegados não trata de problemas como o cumprimento da proteção; projeto foi aprovado pelo Senado nesta terça-feira

(O Globo, 11/04/2019 – acesse no site de origem)

No mês passado, pouco depois de denunciar o namorado à polícia, Lidiane Oliveira foi morta por ele a facadas , dentro de casa, em Ponta Grossa, no Paraná. Antes, em janeiro, a jovem Eva Luana da Silva, que denunciou o padrastro por quase uma década de abuso sexual , viu sua casa ser revirada por ele, embora tivesse em mãos uma medida protetiva, que o proibia de se aproximar da família.

O mecanismo legal, até então concedido apenas pela Justiça, passará também às mãos de delegados quando as cidades onde ocorrerem os casos de violência doméstica não tiverem comarcas judiciais.

Nesta terça-feira, o Senado aprovou projeto de lei que autoriza delegados e policiais a conceder, em situação emergencial, medidas protetivas a vítimas . Com o instrumento, o agressor de uma mulher deve ser afastado imediatamente do convívio com ela.

A expedição do documento já estava prevista na Lei Maria da Penha, aprovada em 2006, segundo a qual, “constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”, o juiz poderá determinar ao agressor o “afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida”.

A atribuição de tal poder também a autoridades policiais é, para especialistas, controversa. A antropóloga Jacqueline de Oliveira Muniz, uma das criadoras do sistema de dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro e professora da Faculdade de Direito da UFF, vê na aprovação do projeto “uma emenda de um soneto mal construído”.

— É obvio que a medida protetiva só faz sentido se for imediata. Quanto mais rápido for ofertada, melhores serão as garantias de proteção à vítima. Não adianta ter uma medida protetiva depois de um mês da denúncia, porque, em geral, a possibilidade da reincidência das agressões é enorme, sobretudo porque as vítimas são geralmente alvos de conhecidos, parentes, pessoas próximas. Ou seja, são mulheres que dormem do lado do agressor, e evidentemente a medida protetiva visa a interromper esse ciclo — diz a antropóloga.

Por outro lado, completa ela, a mera atribuição do poder de emitir o documento a delegados não trata do problema maior, a proteção da mulher vítima de violência, que depende tanto da articulação entre polícia e Justiça quanto da criação de políticas públicas efetivas. Seja expedida por um juiz ou por um delegado, explica Muniz, a medida protetiva precisa ser cumprida, o que nem sempre ocorre.

— Não temos mecanismos de articulação, uma instituição não dialoga com a outra. É claro que é preciso celeridade na proteção à vítima, não se pode negar. A própria Maria da Penha (que dá nome à lei) foi uma vítima do adiamento continuado de suas queixas. O risco não pode esperar. A mulher não pode ficar parada na burocracia, correndo risco de morte. Mas, ao dar aos delegados o direito de conceder medidas protetivas, você amplia o poder de polícia sem ter mecanismos de controle — afirma a professora. — Entregar para a polícia é a tentativa de resolver a parte sem dar conta de todo. Sim, existe essa expectativa de reduzir o tempo de resposta e proteger a vítima, mas isso continua não resolvendo o problema. Me parece uma disputa de autoridade, de quem manda mais, quando, na verdade, não se está se discutindo pesquisas, argumentos para fazer essa máquina da polícia e da Justiça funcionarem de forma integrada.

‘Atribuição inadequada’

O consórcio de organizações e ativistas que ajudou na elaboração do texto da Lei Maria da Penha lançou, em março, uma nota que tratava, entre outros pontos, do projeto aprovado agora pelo Senado. Assinado pelas ONGs Cepia, CFEMEA, Cladem e Themis, por ativistas e pesquisadoras que atuam em defesa dos direitos das mulheres, o texto diz que “há diversas razões pelas quais consideramos inadequada” a atribuição das medidas protetivas a autoridades policiais, dentre elas, “a sua inconstitucionalidade, uma vez que pretende transferir atribuições próprias do Poder Judiciário à polícia, conferindo a esta a possibilidade de decidir sobre medidas que restringem direitos dos cidadãos”.

A nota, divulgada pelo Instituto Patrícia Galvão, também menciona “a precariedade de recursos humanos e materiais das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres e das Delegacias Comuns” para se opor ao projeto. “Há insuficiência de capacitação para os profissionais lidarem com a violência contra as mulheres com base no gênero, incluindo a violência doméstica e familiar, devido à carência de cursos específicos por falta de recursos ou vontade política dos governantes”, diz ainda o comunicado.

Embora as organizações de defesa da mulher ressaltem, na nota, que consideram “relevante parlamentares apresentarem proposições legislativas fundamentadas na preocupação em agilizar a concessão das medidas protetivas de urgência”, os grupos afirmam que projetos como este são “são ameaças à Lei Maria da Penha”, podendo “descaracterizar a norma e trazer prejuízo ao atendimento das mulheres desde a perspectiva integral, intersetorial e multidisciplinar prevista na lei”.

Segundo o  Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o número de sentenças de medidas protetivas aplicadas vem aumentando . No ano passado, foram concedidas cerca de 339,2 mil — aumento de 36% em relação ao ano de 2016, quando foram registradas 249,5 mil decisões dessa natureza. Os processos de feminicídio que tramitam nos tribunais de Justiça do país, ainda de acordo com o CNJ, também vêm aumentando. Em 2018, o salto foi de 34% em relação a 2016, passando de 3.339 casos para 4.461.

Audrey Furlaneto

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