Mãe de dois meninos, de 2 e 8 anos, *Tatiane, 30 anos, foi estuprada dentro do bar que mantinha em São Paulo. Sentiu-se culpada, teve vergonha. Abandonou o trabalho e se isolou. Não contou para ninguém, até descobrir-se grávida. Já estava com 19 semanas de gestação, ou pouco mais de quatro meses. Por direito, poderia fazer o aborto. E fez, mas ouviu “não” de dois hospitais, entre eles o Pérola Byington, referência no atendimento à mulher.
(Universa, 25/04/2019 – acesse no site de origem)
Tatiane foi o nome escolhido para preservar a identidade da paulistana. A vítima conversou com a Universa um dia após receber alta. Ela conseguiu fazer o aborto num hospital do município, neste mês de abril.
Até 2017, Tatiane trabalhava como vendedora num quiosque dentro de uma estação de metrô. Sofreu assédio do gerente, que a tocava sem sua permissão e ameaçava demiti-la caso contasse para alguém. Depois de dois anos, pediu para ser desligada do trabalho.
O estupro
Ela e o então marido investiram num bar perto de onde viviam, mas o casal se separou nesta época e Tatiane passou a tomar conta do estabelecimento sozinha. Em dezembro último, por causa de um jogo de futebol, vendeu bebidas até a noite de um domingo.
“Fiquei até as 22h sozinha, limpando o bar, quando o último cliente queria beber mais e me recusei a vender. Ele me empurrou para dentro e me estuprou por cerca de 40 minutos.”
“Também ameaçou meus filhos e minha mãe, com quem eu moro. Ele conhece minha família. Depois que foi embora, fiquei ali umas quatro horas, sem saber o que fazer. Liguei para o meu irmão me buscar às 3h da madrugada. Lavei meu rosto e agi como se nada tivesse acontecido. Não fiz o BO (boletim de ocorrência) por medo”, conta a vítima, entre longas respirações.
Tatiane não mais voltou ao local. O bar está abandonado até hoje e ela pede que a proprietária arrume outra pessoa para cuidar do ponto. Também não mais passou do portão da casa da mãe.
Foi só no dia 8 de abril, ela lembra com precisão, que passou muito mal. Descobriu a gravidez num posto de saúde perto de casa. De lá, foi encaminhada para atendimento psicológico no Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), onde contou pela primeira vez da violência que havia sofrido em dezembro. E foi ali também onde descobriu não precisar fazer boletim de ocorrência caso fosse de sua vontade realizar o aborto. E era.
Além de uma situação como essa, a Justiça autoriza o aborto quando o feto não tem cérebro ou quando a mãe corre risco de morrer.
A saga
A vítima foi encaminhada para o Pérola Byington no dia 10 de abril. Saiu às 4h da manhã de casa. Pegou dois trens e um ônibus. Levou uma hora e meia para chegar no Centro. Saiu de lá às 19h20. Grávida.
“Passei por uma psicóloga e uma assistente social. Contei, de novo, minha história. Quando cheguei na ginecologista, ela tentou me convencer a ter a criança e doar para uma família. Ou tê-la em outro Estado”.
“Perguntei: ‘a senhora entendeu de quem é o filho?’. Ela mandava eu me acalmar e ligar para uma amiga. Eu implorei para fazer aborto. Por último, ela disse que eu já estava com 20 semanas de gestação, e não poderia. Minha vontade era de me matar.”
Não há indicação para interrupção da gravidez após 22 semanas de idade gestacional. É uma recomendação da Organização Mundial da Saúde, que também limita o ingresso para atendimento ao aborto previsto em lei com 20 semanas ou com peso fetal menor que 500 gramas.
Mas Tatiane estava com 19 semanas e cinco dias, e o feto tinha 360 gramas, conforme aponta a ultrassonografia que ela fez no próprio Pérola. Ou seja: dentro da recomendação.
Ela voltou ao Creas no dia seguinte, e encaminhada para o Hospital Regional de Ferraz de Vasconcelos. Ouviu o segundo “não”.
“O ginecologista nem me deixou falar. Viu na ficha minha idade gestacional e disse que só faria o aborto com boletim de ocorrência e ordem judicial. Saí da sala dele aos prantos”.
No terceiro hospital, que pertence ao município, a equipe médica que avaliou a vítima constatou que a idade gestacional ainda estava no limite permitido por lei. Os responsáveis pela unidade pediram que não mencionássemos o nome do hospital nessa reportagem, mas uma das responsáveis explicou a situação à Universa:
“A gente fica preocupada em fazer o aborto nessa altura da gravidez, pelos riscos que a mulher corre, e por não saber quanto tempo vai levar o procedimento. São muitos comprimidos de que ela precisa. Mas é o direito da paciente e nosso dever estar lá”.
O aborto
“A médica fez todos os exames necessários, como teste de HIV, e perguntou se era aquilo mesmo que eu queria. Comecei o processo na sexta-feira. Foram seis comprimidos no total. Não passei mal nem senti dor. Consegui fazer o aborto na madrugada de quartafeira. Não quis vê-la. Estou aliviada por uma parte. Agora vou tentar tocar minha vida.”
A assessoria de imprensa da Secretaria Estadual de Saúde informou que, após atendimento com equipe multidisciplinar, Tatiane foi informada sobre os riscos do procedimento, dada a avançada idade gestacional. O órgão explicou também que o aborto legal em casos com mais de 12 semanas pode vários durar dias, por causa dos medicamentos utilizados, aumentando, por exemplo, o peso do feto e os riscos para a mãe.
Foi dada ainda, segundo a pasta, opções para a paciente doar a criança. A decisão de não abortar, portanto, segundo a assessoria, teria sido tomada em comum acordo, mas Tatiane nega.
Quanto ao pedido de decisão judicial feito pelo segundo hospital, justifica: por se tratar de um caso fora das normas técnicas, era preciso uma comprovação para dar segmento ao aborto.
“Essas mulheres têm passado por muito sofrimento. Elas precisam ser acolhidas dignamente”, conclui a profissional que cuidou de Tatiane.
Luiza Souto