Pesquisa detectou entraves à participação feminina em sala; professoras são 17% do quadro, e alunas, 40%
(Folha de S.Paulo, 07/09/2019 – acesse no site de origem)
“Eu sentia que a gente falava e não repercutia. Não tinha eco em sala de aula.” “Eu me questionava: será que falei algo tão fora pra não ser nem debatido?”
“Eu sabia que era uma aluna mais quieta, apesar de parecer contraditório, porque queria seguir carreira acadêmica. Quando vim dar aula aqui, tomei consciência de que não era só comigo.”
Os relatos das pós-graduandas Cecilia Almeida, 26, e Lívia Guimarães, 32, e da professora Sheila Cerezetti, 35, mostram as percepções que as levaram a mergulhar no dia a dia das aulas da Faculdade de Direito da USP. O objetivo era entender como o fato de o estudante ser homem ou mulher influenciava as suas interações na sala.
Os resultados foram publicados em livro no início do ano e, em poucos meses, geraram uma profunda transformação na faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, que completa 192 anos.
Levaram a ações afirmativas como criação de novas disciplinas, mudanças em bibliografias e postura de professores e novas regras em concursos de seleção docente.
A pesquisa feita por Sheila, Cecilia e Lívia contou com mais dez colegas, nove mulheres e um homem. Por quatro meses, o grupo observou aulas e entrevistou estudantes.
O estudo confirmou o que antes era uma sensação. Alunas da São Francisco participam menos que os homens —e as que estão perto de se formar participam ainda menos.
Durante a pesquisa, foram presenciados episódios de sexismo e desrespeito explícito, inclusive de alunos com professoras. Mas o que mais chamou a atenção foi que o déficit de participação feminina se manifestava muito mais por gestos e discursos sutis.
É o caso dos exemplos usados em sala de aula, quase sempre com protagonista masculino. A pesquisa ressalta que, no direito, as figuras do “homem médio” e do “bom pai de família” são usadas para indicar padrões de retidão. “Por outro lado, a menção às mulheres ocorre geralmente em papéis de ‘mãe’, ‘concubina’, ‘golpista’ etc.”
“Tem situações sutis em que, se você não se impõe, acaba se anulando. Como quando você pergunta algo e o professor ignora, ou quando o colega te interrompe para explicar o que você está dizendo”, diz a aluna Leticya dos Santos.
Outro exemplo, conta sua colega Vitória Gonçalves, 21, é quando a aluna leu os textos previstos para a aula, mas um colega que claramente não o fez muda a discussão para um autor fora da bibliografia.
Leticya e Vitória integram um grupo de debates que, desde agosto, reúne cerca de 15 alunas toda semana. Elas trabalham no desenvolvimento de técnicas argumentativas e de aspectos psicossociais, como autoconfiança.
A forma dissimulada como a desigualdade de gênero aparece na faculdade levou a pesquisa a caracterizá-la como parte de um “currículo oculto”.
O conceito, levado ao título da publicação (“Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto?”), designa conteúdos que não estão na grade oficial, mas ainda assim são transmitidos.
Contribui para isso, conclui o estudo, a composição do corpo docente. Os homens são 126 dos 152 professores da São Francisco (83%) e 36 dos 40 titulares (90%).
A menor presença de mulheres em cargos de poder do meio já havia sido apontada por outros levantamentos. Elas são 49% dos advogados, mas só 34% dos juízes que ingressaram na carreira de 2010 a 2018, segundo a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros).
No caso das alunas de direito na USP, a proporção costuma ficar próxima de 40% de mulheres. Um dado deste ano, porém, acendeu um alerta. Na seleção via Fuvest, elas são 45% das aprovadas. No entanto, pelo Sisu (Sistema de Seleção Unificada), onde estão 80% das vagas de cotas, o percentual é de 39%.
Ao investigar a discrepância no corpo de professores, uma explicação surgiu, conta o diretor Floriano de Azevedo Marques Neto. Percebeu-se que um obstáculo à inscrição de mulheres era o fato de a idade de conclusão do doutorado coincidir com aquela em que muitas têm filhos.
Diante disso, a faculdade decidiu em junho que, quando um concurso tiver uma candidata grávida ou que tenha acabado de ter filho, a vaga deve ser congelada por um ano. A direção criou também uma comissão de combate ao preconceito e uma ouvidoria para questões de gênero.
Faltava demarcar a nova agenda no espaço. Das salas de aula com nomes de antigos professores, todas homenageavam homens, retratados em quadros a óleo. Um grupo de professoras então se juntou para reivindicar uma sala com nome da jurista Ada Pellegrini Grinover (1933-2017). O espaço, em reforma, terá retrato da processualista.
A pesquisa também foi discutida em encontros de formação que vêm ocorrendo desde o ano passado e levou a mudança de postura de docentes. Professora da faculdade há 17 anos, Nina Ranieri conta que antes não notava de forma explícita o déficit de participação, tão concentrada que ficava na aula. Mas ao sair o estudo o percebeu com clareza. “Foi como se caísse um véu”, descreve.
Coordenadora da Cátedra Unesco de Direito à Educação, ela conta que passou a saudar a classe com “bom dia a todos e todas” e a se abrir para compartilhar mais experiências pessoais em grupos menores, para criar um clima mais aberto ao diálogo.
Professor de direito constitucional, Conrado Hübner Mendes diz que também passou a ficar atento à questão e a estimular dinâmicas que incentivem a fala e a escuta. Também criou a disciplina optativa Direito e discriminação, que investiga o tema também em relação ao gênero. “A pesquisa é um marco”, diz. “Tem potencial para revolucionar o ensino jurídico.”
Seu colega Flávio Roberto Batista foi outro que decidiu mudar práticas. Na disciplina de seguridade social que leciona, colocou só mulheres na bibliografia. Ele conta que informou a medida à sala no início do semestre e notou engajamento maior das alunas.
A constatação vai ao encontro de uma das conclusões da pesquisa: as estudantes tendem a interagir mais na aula quando a questão de gênero é pautada. Outras condições favoráveis são o comportamento do professor, aberto ao diálogo, e a configuração de grupos menores para determinadas atividades.
Por outro lado, a pesquisa mostrou que, se o incentivo à participação vira uma espécie de pressão, pode ter o efeito contrário, de inibir alunas.
Coordenadora do estudo, Sheila aponta que a pesquisa teve o cuidado de não culpá-las nem atribuir o resultado a traços de personalidade. E que o objetivo não é impor um padrão de alta participação, mas sim retirar barreiras.
Por Angela Pinho