Patricia Galvão viveu sob regras próprias e deixou como legado a ideia de que as mulheres podem, e devem, ser livres
(Aventuras na História, 09/06/2019 – acesse no site de origem)
Pagu já foi quase palavrão, sinônimo de confusão, antônimo de moça direita. Considerada por muitos como louca e devassa, o fato é que ela fez e viveu diferente das outras, desde o começo.
Morreu cedo, aos 52 anos, mas o que aconteceu nesse tempo foi tudo intenso e precoce. “Ela sempre foi vista como muito louca, e é essa Pagu que precisa ser desmistificada”, afirma a pesquisadora Lucia Maria Teixeira, autora de Pagu – Livre na Imaginação, no Espaço e no Tempo.
Jornalista, militante política, escritora, tradutora, desenhista e diretora de teatro, Patrícia Rehder Galvão nasceu em uma família de classe média alta de São João da Boa Vista, interior de São Paulo, em 1910.
Mudou-se para a capital aos 2 anos. Morou na Liberdade, Brás, Aclimação, Bela Vista e em uma chácara no então município de Santo Amaro. Aquela São Paulo pulsante do começo do século 20 foi o cenário perfeito para as estripulias de quem se autodeclarava uma “moleca impossível”.
Impossível também para os valores de hoje. Aos 12 anos, no 1922 em que acontece a Semana de Arte Moderna, inicia sua vida sexual com Olympio Guilherme, diretor do primeiro filme neorrealista brasileiro. Aos 14, engravida e faz um aborto. O que seria então um choque destruidor para a maioria das moças, para ela foi uma fase.
“Ela procurava pessoas e causas autênticas”, afirma o professor K. David Jackson, da Universidade de Yale, especialista em literatura de língua portuguesa no prefácio do livro Paixão Pagu – A Autobiografia Precoce de Patrícia Galvão. O livro foi escrito por Pagu originalmente como uma longa carta aos seus filhos em 1940, quando, com apenas 30 anos, acabara de sair de sua 23ª passagem pela prisão.
Casamento gótico
Aos 15, começa a carreira jornalística – que a sustentaria e a acompanharia até o fim – colaborando com o Jornal do Brás enquanto ainda frequentava o curso de normalista.
Na escola, ainda Patrícia – Zazá para a família e Patsy no jornal -, conhece o poeta Raul Bopp, que a enturma com os modernistas, especialmente com o então casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Eles se encantam com a colegial de batom escuro e atitude desbocada. Aos 19, começa a colaborar com a revista Antropofagia, fundada por eles, que publica seus desenhos.
“Fazia às vezes de mascote do modernismo paulista e de ‘boneca’ do casal Tarsila e Oswald de Andrade”, afirma a antropóloga Heloisa Pontes, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp – núcleo que leva o nome de Pagu, aliás – no artigo Vida e Obra de uma Menina Nada Comportada.
O apelido Pagu também foi ideia de Bopp, segundo o escritor e biógrafo Augusto de Campos, autor de Pagu, Vida e Obra. À época, o poeta sugeriu que ela usasse um nome literário com as primeiras sílabas de seu nome e sobrenome.
Mas houve um engano: ele pensou que o sobrenome fosse Goulart. Já era tarde: o poema O Coco de Pagu já estava pronto. “Pagu tem os olhos moles / uns olhos de fazer doer”, são os primeiros versos da homenagem à menina, rebatizada assim por ele. A “boneca” acabaria por trair a dona.
Em 1930, num imenso escândalo, casa-se com Oswald de Andrade. Provavelmente, já eram amantes. Num gesto memoravelmente excêntrico, o casamento foi no Cemitério da Consolação, em São Paulo, diante do jazigo da família do escritor.
Fase vermelha
Em 1930, a até então próspera São Paulo estremece sob o impacto do crash da bolsa de valores de Nova York. O preço do café desaba, a imigração do interior para a capital acirra a disputa por emprego na recém-industrializada cidade.
As condições de vida dos trabalhadores pioram, a tensão aumenta. “A (causa) que a encontrou primeiro, inesperadamente, foi a questão social e o ativismo político, mas demorou para sentir um interesse vital. Tampouco achava interessante no começo a política radical”, conta K. David Jackson.
A mudança de opinião veio após uns dias com o líder comunista Luís Carlos Prestes. O encontro aconteceu em 1931, em Montevidéu, no Uruguai, e a ligação com o Partido Comunista (PCB) durou sete anos.
“A pureza do caminho de Patrícia logo se mostrou incompatível com a ação partidária que escolhera”, explica Jackson, em Paixão Pagu. “Ia acabar sendo expulsa em 1938, mas não antes de tentar provar a sua proletarização, inclusive com o romance Parque Industrial, de 1933. Ninguém ainda havia feito literatura nesse gênero.” A obra é considerada um dos pontos altos da trajetória de Pagu e, por exigência do Partido Comunista, saiu sob o pseudônimo de Mara Lobo.
O pseudônimo se juntou a muitos outros, como Pat, Pt, Ariel, Gim e Solange Sohl. Como King Shelter, escreveu histórias policiais para a revista Detetive, do dramaturgo Nelson Rodrigues, identidade descoberta apenas 36 anos depois de sua morte. Traduziu Franz Kafka e Eugène Ionesco quando ninguém ainda os conhecia por aqui
“Agitadora anarquista”
A falta de pudor se transforma também em coragem. Ainda em 1931, no porto de Santos, durante um choque entre trabalhadores e a polícia, foi ela quem recolheu o corpo agonizante do estivador negro Herculano de Sousa, enfrentando a cavalaria. É presa pela primeira vez, como agitadora. O episódio lhe rendeu o título de primeira presa política no Brasil depois da independência.
Por conta do incidente, o próprio Partido Comunista, receoso de ser responsabilizado, chamou-a de “agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”. Filiada ao PCB, tanto ela como Oswald eram malvistos pelos militantes do partido. Em março do mesmo ano, lançaram o tabloide O Homem do Povo, pasquim político que circulou por apenas dois meses. A polícia o proibiu.
Depois da prisão e da publicação de Parque industrial, Patrícia vai embora para dar uma volta ao mundo, enviando, como correspondente, reportagens para jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo, como Correio da Manhã, Diário de Notícias e A Noite. Seu primeiro filho, Rudá de Andrade, fica aos cuidados do pai.
Visitou os Estados Unidos, Japão e Manchúria, região que hoje é território chinês, então um protetorado japonês. Lá, fez a cobertura da coroação do imperador Pu-Yi, último imperador legítimo da China, deposto em 1912, e agora posto de volta como um fantoche dos japoneses. No navio, entrevistou Sigmund Freud.
Rainha da soja
Pagu também é considerada uma das responsáveis por trazer a soja para o Brasil. Nessa viagem, como conta Raul Bopp na biografia de Augusto de Campos, Patrícia fez amizade com a madame Takahashi, esposa do diretor da South Manchurian Railway. Com a influência da amiga, Pagu tinha bom acesso ao palácio, onde conversava informalmente com o imperador.
“Quando Pagu me narrou o ambiente de familiaridade, pedi que procurasse arranjar algumas sementes selecionadas de soja”, contou Bopp a Campos. Logo o amigo poeta receberia 19 saquinhos de semente.
Pagu não parava. Após a aventura oriental, entrou na Europa de trem pela Transiberiana, passou por Moscou e chegou a Paris. Na França, passou a frequentar alguns cursos na Sorbonne e filiou-se ao Partido Comunista Francês.
Foi pega pela polícia com documentos falsos, o que lhe garantiu mais uma prisão. Acabou liberada após a intervenção do embaixador brasileiro Souza Dantas junto ao governo francês.
Mas o cerco do governo Vargas aos comunistas estava mais apertado do que nunca. Na primeira metade da década de 1930 o cenário político brasileiro é balançado por dois extremos opostos, a Ação Integralista, de inspiração nazifascista, e o Partido Comunista
Inimiga do Estado
1935 seria um ano furioso. Após várias crises de ciúmes, separa-se de Oswald de Andrade.
Enquanto isso, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), agrupando, numa “frente única”, elementos de esquerda, sindicatos e alguns tenentes, expandia-se sob a presidência geral de Luís Carlos Prestes. Ao radicalizar suas propostas, a ANL foi fechada pelo governo, fragmentando-se. Os comunistas, em resposta, optaram pela insurreição armada.
Otimista, Prestes esperava que a revolta militar despertasse uma adesão massiva. Mas veio o fracasso do levante, em 1935, e todos os suspeitos foram caçados, presos, torturados e alguns, eliminados. Pagu está entre eles, e vai de novo para a cadeia. Desta vez, por dois períodos praticamente sem intervalo, que dariam um total de cinco anos.
Em muitas ocasiões, esteve sob tortura. “Passavam-se as horas e os dias e as semanas e o sangue escorrendo e os verdugos se revezando para me vencerem ou me enlouquecerem.
Descansava no hospital e voltava para a tortura”, conta a própria Pagu em texto reproduzido por Augusto de Campos. “Agildo Barata, o chefe dos verdugos, pregava então os pregos na minha cabeça.” Em entrevista ao escritor, sua irmã Sidéria Galvão confirma: “No Rio, foi torturada, sim, inclusive aquela tortura estúpida, de unha e tudo, ela apanhou bastante no Rio, sim. Ficou muito doente”. Ao pai, Pagu escreveu da prisão: “Continuo ainda um pouco esmagada, mas vai se vencendo corajosamente”.
O período da prisão cobrou um alto preço de Patrícia, que preferiu não ser mais chamada de Pagu. Com apenas 44 quilos e convivendo com sequelas físicas e emocionais, padecia de forte depressão e sobreviveria à sua primeira tentativa de suicídio. Na saída, Pagu rompe com o Partido Comunista, de linha stalinista, afirmando-se trotskista.
Último romance
O amigo Geraldo Ferraz é um importante apoio nesse momento e eles acabam se casando. Aos poucos Patrícia se reergue, tem seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz, e retoma o jornalismo. Trabalha como correspondente da agência France-Presse no Brasil por dez anos.
Assim como recuperou a saúde, os ideais políticos também voltam para sua vida, agora pelo viés de um socialismo bem mais brando.
Entra para o pequeno Partido Socialista e se candidata, sem sucesso, a deputada estadual em 1950. Na campanha, publica o panfleto Verdade e Liberdade, expondo os motivos que a levaram a romper com o Partido Comunista. “Então, quando recuperei a liberdade, o Partido me condenou: fizeram-me assinar um documento no qual se eximia de toda a responsabilidade. Aquilo tudo, o conflito e o sangue derramado, fora obra de uma “provocadora”, de uma “agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”. Assinei.”
Um retorno às artes marca o que se tornaram seus últimos anos. A impaciente Patrícia, em 1952, volta aos estudos e frequenta a Escola de Arte Dramática de São Paulo, onde apresenta tradução e estudo de A Cantora Careca, de Ionesco.
Já em Santos, no litoral paulista, para onde se muda, assume a coordenação do Teatro Universitário Santista (1956) e a presidência da União dos Teatros Amadores da cidade (1961). A partir de 1957 mantém a coluna Palcos e Atores, em A Tribuna, jornal local.
Na coluna, lutava pela dramaturgia experimental e pela liberdade de criação. Dirige Fando e Lis, de Fernando Arrabal, que recebeu vários prêmios. Mais tarde, encenaria também A Filha de Rapaccini, de Octavio Paz.
Trinta anos depois da aventura ao redor do mundo, é hora de voltar a Paris. Desta vez, porém, para uma cirurgia que poderia curá-la de um câncer. Sem resultado. Ela tenta o suicídio novamente e volta ao Brasil. “Quando eu morrer, não quero que chorem a minha morte. Deixarei o meu corpo pra vocês”, diz em uma de suas charges, da personagem Kabeluda. Seu corpo foi deixado há 56 anos, em 12 de dezembro de 1962.
Dimalice Nunes