Defensoria Pública identificou 45 mulheres presas indevidamente desde agosto do ano passado
(Folha de S.Paulo, 29/03/2019 – acesse no site de origem)
“A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar”, determinou a lei 13.769, sancionada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) em dezembro do ano passado.
A determinação impõe duas ressalvas —a mulher não pode ter cometido o crime com uso de violência ou grave ameaça e nem contra seu filho ou dependente.
Na Central de Audiência de Custódia de Benfica, única na cidade do Rio de Janeiro, a lei foi descumprida pelo menos 45 vezes entre agosto de 2018 e janeiro de 2019. O levantamento foi realizado pela Defensoria Pública do estado do Rio.
A Defensoria identificou 161 mulheres que preenchiam todos os requisitos para o veto à prisão preventiva (gestantes ou mães de crianças, que cometeram crimes sem violência).
Ainda assim, 45, ou 28%, foram mantidas presas preventivamente após a audiência de custódia. Outras 100 foram colocadas em liberdade provisória e a 16 foi imposta a prisão domiciliar.
Em um dos casos, o juiz defendeu a manutenção da prisão afirmando que as crianças que residiam com a mulher corriam muito mais risco com a sua liberdade do que com o seu afastamento.
Em outra situação, o magistrado afirmou: “Veja que embora ela tenha filhos menores de 12 anos, certo é que tudo leva a crer que no dia dos fatos não estava dispensando os cuidados aos filhos, ainda mais porque nem sequer estava em casa”.
A defensora Caroline Tassara, coordenadora do Núcleo de Audiência de Custódia da Defensoria, diz que decisões como essas chamaram a atenção pela subjetividade e pelo julgamento moral.
“Não tem nada de concreto na comunicação da prisão, nenhum estudo de assistente social ou órgão acompanhando aquela família. Com base no relato apenas dos policiais, o juiz faz julgamento moral daquela mulher”, afirma.
Durante o período analisado, a lei pode ter sido descumprida mais do que 45 vezes —o órgão não conseguiu detalhar os crimes e o perfil de todas as 556 mulheres que passaram pela Central nos meses contemplados pela pesquisa. A Defensoria teve acesso ao formulário com a listagem dos crimes cometidos por 347 delas.
Entre essas, algumas protegidas pela lei 13.769 e outras, não, 74% se identificam como pretas e pardas. A maior parte foi presa por crimes relacionados à Lei de Drogas (132) ou por furto (118).
A lei que está sendo desrespeitada foi aprovada na esteira de decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de fevereiro de 2018, que concedeu habeas corpus coletivo a todas as mulheres gestantes ou mães de crianças com até 12 anos, submetidas à prisão cautelar em território nacional.
Em seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski reconheceu que as mulheres experimentam situações degradantes no sistema prisional, privadas de cuidados médicos pré-natal e pós-parto, com prejuízo para as crianças.
O ministro discorreu sobre uma “cultura do encarceramento” que se revela na imposição exagerada de prisões provisórias a “mulheres pobres e vulneráveis”.
“Tal decorre (…) seja por um proceder mecânico, automatizado, de certos magistrados, assoberbados pelo excesso de trabalho, seja por uma interpretação acrítica, matizada por um ultrapassado viés punitivista (…), cujo resultado leva a situações que ferem a dignidade humana de gestantes e mães submetidas a uma situação carcerária degradante, com evidentes prejuízos para as respectivas crianças”, afirmou.
A partir do relatório, a Defensoria pediu ao STF a concessão da prisão domiciliar a 20 mulheres, mães de menores de 12 anos, que permanecem encarceradas. Elas estão entre as 45 citadas pela pesquisa —as demais já foram soltas após a custódia, por juízes da instrução, do Tribunal de Justiça do estado ou do Superior Tribunal de Justiça, que acataram recursos da Defensoria.
O órgão também sugeriu investimento em cursos de capacitação para os juízes criminais e de audiências de custódia sobre temas relativos ao aprisionamento feminino e questões de gênero e raça.
A defensora Tassara diz que o principal objetivo do relatório é enxergar quem são as pessoas vulneráveis ao sistema de Justiça criminal —em geral mulheres pretas ou pardas, de baixa escolaridade e de baixa renda.
“Não tem nenhuma mulher presa com domicílio na zona sul ou Barra da Tijuca. Isso significa que não existam? Claro que não. Mas por que uma mulher de Bangu é mais vulnerável ao sistema do que uma que mora em Ipanema?”