Maria da Penha considera flexibilização da posse de armas um retrocesso

01 de fevereiro, 2019

Em tentativa de feminicídio praticada pelo ex-marido, ela ficou paraplégica ao ser atingida por um tiro nas costas enquanto dormia

(Catarinas, 01/02/2019 – acesse no site de origem)

Após duas tentativas de feminicídio, meses no hospital e mais de 19 anos buscando a prisão do agressor, seu ex-marido, Maria da Penha Fernandes representa a virada legal na forma como o Brasil vinha até então tratando os casos de violência doméstica. A Lei nº 11.340 foi sancionada em 2006, a partir da responsabilização do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA) por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras.

Com 12 anos de existência, a lei é considerada um dos mecanismos legais mais completos sobre o tema, mas sua eficácia tem demonstrado fragilidades principalmente no que se refere à necessidade de mudar a cultura machista e misógina presente na sociedade, que reflete diretamente nas agressões e mortes de mulheres.

A educação é o ponto central para a mudança desta cultura e a temática precisa ser tratada desde os anos iniciais até a universidade, segundo Maria da Penha. “Desde quando a lei foi sancionada, o relatório que foi enviado para o Brasil exigia também um compromisso com a educação. Então, a gente só pode desconstruir uma cultura através da educação e isso em relação ao racismo, a violência contra a mulher e ao público LGBT. A educação tem que estar interferindo nisso. Infelizmente, apesar dessa recomendação dada ao Brasil, ela ainda não foi cumprida no nível do Ministério da Educação, e é necessário que aconteça”, considera.

Ao não investir em ações de prevenção e sensibilização sobre a violência contra a mulher, se torna difícil acreditar que o Brasil consiga melhorar seus índices. A Organização Mundial da Saúde (OMS) coloca o Brasil no 5º lugar dos países que matam mulheres no mundo no contexto doméstico e familiar. No mês passado, a organização internacional Human Rights Watch divulgou relatório apontando que o País enfrenta uma epidemia de violência doméstica.

Em 2017, das 4.539 mulheres assassinadas pelo menos 1.133 foram vítimas de feminicídios. E o instrumento utilizado em mais de 50% dos casos de assassinato de mulheres foi a arma de fogo, segundo dados do Datasus. Foi também este instrumento utilizado pelo ex-marido de Maria da Penha na tentativa de feminicídio que a deixou paraplégica.

Questionada pelo Portal Catarinas sobre o decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro que flexibiliza a posse de armas no País, ela considera, em consonância com o alerta dos movimentos feministas, que a medida vai agravar a situação já grave de violência contra as mulher. A própria lei de 2006, prevê como medida protetiva a suspensão da posse ou porte de armas do agressor.

“Eu vejo que foi um retrocesso, mas ainda tenho esperança que na medida em que o presidente se inteire sobre a grave situação da mulher, que vai se agravar muito mais quando a posse de armas existir, que ele repense o seu posicionamento”, falou.

Maria da Penha disse ainda que os recentes índices de feminicídios – mais de 100 casos foram divulgados nestes primeiros 30 dias do ano no País – lhe causam muita tristeza. Ela considera que para reverter esse cenário é preciso conscientizar ainda mais as mulheres, informando-as sobre seus direitos.

“Muitas vezes a mulher se acha tentada a atender ao pedido de perdão do seu agressor e acredita que desta vez ele vai mudar. E isso não acontece. Ela precisa se conscientizar que quando esse ciclo tiver iniciado no seu relacionamento ela precisa procurar se orientar sobre os seus direitos e romper com esse relacionamento. Pra isso a lei existe e é preciso que ela seja orientada pela lei e se necessário protegida pela lei para evitar que um feminicídio aconteça”, afirma.

A divulgação dos mecanismos de proteção, assim como a mudança cultural de toda a sociedade são os caminhos apontados por ela para romper o ciclo que violência que tanto vitima as mulheres no Brasil.

“Em briga de marido e mulher a gente tem que meter a colher sim! Tem que ajudar a mulher a se fortalecer, a levar essa mulher para um centro de referência. O centro é para mim um dos equipamentos mais importantes da lei, da rede de atendimento, porque a mulher vai colocar a sua vivência ali e será orientada por um advogado, uma assistente social, uma psicóloga. Porque infelizmente ela muitas vezes não percebe que está sofrendo violência psicológica a muito mais tempo e ela só percebe quando sofre a violência física. É importante que ela tenha conhecimento para sair o quanto mais cedo possível dessa situação”.

A entrevista foi concedida antes de sua participação no evento promovido pela Associação Catarinense das Indústrias de Água Mineral (Acinam) que lançou em 30 de janeiro a campanha “Diga não à Violência à Mulher, Menos ódio mais amor”. A partir de fevereiro, mais de um milhão de garrafões de 20 litros d’água mineral receberão o selo com o número da Central de Atendimento à Mulher, o 180.

 “FUI VÍTIMA DE UM CRIME PREMEDITADO E ESSA DESCOBERTA ME FEZ LUTAR POR JUSTIÇA”

A brutalidade da violência e ineficiência da Justiça em punir Marco Antonio Heredia Viveros tornaram o caso emblemático no País. Era 1983, quando Marco simulou um assalto e deu um tiro nas costas de Maria da Penha enquanto ela dormia. A lesão a deixou paraplégica.

“Quando eu voltei do hospital, ele tentou me eletrocutar no banho. Fui vítima de um crime premeditado e essa descoberta me fez lutar por Justiça”, contou.

Maria da Penha, que em 2009 fundou o Instituto Maria da Penha e desenvolve diversas ações de enfrentamento ao problema, relata a sua história em palestras que faz pelo Brasil demonstrando as difíceis nuances que a violência doméstica apresenta na vida das mulheres quando elas se tornam alvo de pessoas com quem estão envolvidas afetivamente dentro de um relacionamento, muitas vezes estável.

Os dois se conheceram em 1974 quando ela fazia mestrado na USP, se casaram em 1976 e tiveram três filhas. “Depois do nascimento delas, ele conseguiu a naturalização como brasileiro e aí ele mudou, tornou-se agressivo. Tentei convencê-lo a nos separarmos, mas ele não aceitava”, explica ela, destacando que nesta época o movimento de mulheres estava atuando na visibilidade dos casos de violência doméstica e da impunidade dos julgamentos que consideravam que os agressores agiam por “violenta emoção”.

Mesmo após as duas tentativas de feminicídio, o primeiro julgamento de Marco Antonio aconteceu somente oito anos após o crime, quando ele foi sentenciado a 15 anos de prisão. Após ingressar com recurso, ele saiu do fórum em liberdade. “Neste período me integrei ao movimento de mulheres, que me amparou e eu continuei a luta”, ressalta. O segundo julgamento em 1996, e,  mesmo com condenação, não o levou à prisão sob a alegação de irregularidades processuais por parte dos advogados de defesa.

Dois anos após o segundo julgamento, Maria da Penha, o Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) denunciaram o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA). Durante todo o processo internacional, o  Estado brasileiro não se pronunciou sobre o caso e em 2001 foi responsabilizado.

“Faltando seis meses para o crime prescrever, ele foi preso. Ficou dois anos no regime fechado, depois passou para o semiaberto. Já faz tempo que está em liberdade”, contou Maria da Penha.

A  Lei n. 11.340/2006 leva o seu como uma forma de reparação simbólica pelos anos de omissão e impunidade do Estado brasileiro com a violência sofrida.

Jessica Gustafson

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