O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgará na quinta-feira uma ação de investigação judicial eleitoral (Aije) cujo resultado vai barrar, ou no mínimo
arrefecer, fraudes de partidos que usam mulheres como candidatas laranjas para preencher a cota obrigatória de 30%. A tendência é que o tribunal confirme sentença do TRE do Piauí, levando à cassação de toda a chapa de seis vereadores do município de Valença do Piauí eleitos em 2016, numa coligação que registrou candidatas laranjas.
(Valor Econômico, 25/02/2019 – acesse no site de origem)
O julgamento abrirá caminho para outras decisões: tramitam no tribunal, hoje, 31 ações semelhantes, sobre casos de laranjas. “Acredito piamente que a Justiça brasileira vai ser muito firme na análise destes casos em razão das mudanças culturais que estamos vivendo. São novos tempos e é preciso que todos tenham essa compreensão. Não há mais espaço para essas fraudes eleitorais”, afirma a advogada Luciana Lóssio, ex-ministra do TSE.
A primeira decisão nas instâncias superiores sobre caso de laranjas ocorrerá no momento em que o PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro, enfrenta graves denúncias sobre este tipo de fraude em Pernambuco e Minas Gerais. As denúncias já derrubaram o advogado Gustavo Bebianno da SecretariaGeral da Presidência da República e deixam na berlinda o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio.
No TSE, Luciana Lóssio foi uma das vozes mais contundentes em favor de revisão da jusrisprudência que impedia o avanço de investigações sobre laranjas. Antes das eleições de 2012 só era possível investigar indícios de fraudes com laranjas cinco dias depois do registro da candidatura. “Cinco dias após o registro das candidaturas ninguém sabe se aquela pessoa ali é candidata de verdade ou de mentira, se é pra valer ou se é ficção. Por isso esse tipo de discussão nunca chegava à Justiça Eleitoral” explica.
Lóssio iniciou então um debate na corte sobre um caso em Jânio de Freitas, coincidentemente também no Piauí. “Mudamos a jurisprudência por entender que essas fraudes não só podem como devem ser analisadas em Ações de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE), que podem ser propostas até a diplomação, e nas Ações de Impugnação de Mandato Eletivo, que também podem ser propostas até 15 dias depois da diplomação.”
Essa mudança permitiu que casos como o de Valença e os que envolvem o PSL tenham vindo à tona agora, acredita a advogada. “Tivemos inúmeras ações propostas em 2016. O Tribunal Regional Eleitoral em São Paulo foi o primeiro a julgar um caso que cassou toda a chapa. E aí vieram as eleições de 2018”, recorda-se.
“Quando você lança uma candidata que não é candidata, que está ali apenas para preencher um percentual da cota, você está fraudando o sistema
eleitoral. É isso que está surgindo hoje à tona”, constata a advogada. Sobre as denúncias envolvendo o PSL, Luciana Lóssio afirma só ter as informações divulgadas pela mídia, mas pondera que os casos “ferem o bom senso e a razoabilidade”. “Não é crível imaginar que a candidata receba a verba do fundo eleitoral, maior do que foi destinado inclusive para o candidato à Presidência da República pelo partido”, diz, referindo-se ao caso de Pernambuco, em que uma aposentada recebeu R$ 400 mil, terceiro maior montante do fundo eleitoral do PSL em todo o país e teve 264 votos. “As mulheres passaram a ser viúvas ricas das eleições de 2018.”
A lei que estabeleceu a cota de 30% de candidaturas femininas é de 1997. “Por que essa cota de 30% nunca funcionou? Porque ela foi idealizada para nunca dar certo”, indaga e responde a ex-ministra. Luciana Lóssio enumera uma série de minirreformas eleitorais feitas pelo Congresso que tentaram minar a representatividade feminina. Lóssio sempre se perguntou, como ministra e advogada eleitoral, quais eram os entraves que levavam o país a ter uma política afirmativa de gênero, com maioria do eleitorado feminino, mas apenas 10% de mulheres na representação política.
Em 2015 foi aprovada uma lei que segundo Lóssio, comprova a “audácia” dos partidos contra a representação feminina. A despeito da cota de 30% de candidaturas femininas, estabeleceu-se que “os partidos reservarão em contas bancárias específicas no mínimo 5% e no máximo 15% do montante
do fundo partidário destinado a financiamento das campanhas eleitorais para as mulheres”.
“Ou seja, criaram um teto de gastos com mulheres, o que é manifestamente inconstitucional.” O assunto chegou ao Supremo Tribunal Federal e, em 2018, os ministros decidiram que a fixação de um teto financeiro do fundo partidário para as candidatas mulheres era inconstitucional. “Se há uma cota mínima de 30% de registro de candidaturas femininas, também deve ser observado pelo menos 30% do dinheiro e pelo menos 30% de visibilidade nas propagandas eleitorais. Aí começamos a mudar um pouco o sistema e o funcionamento”, diz a ex-ministra.
Quando os políticos decidiram criar o fundo eleitoral, para compensar a falta de dinheiro para campanhas devido ao veto a doações de empresas, Luciana Lóssio já estava fora do TSE. “Mas fui atrás de algumas deputadas e senadoras [em 2018], de diversos partidos, e propus uma consulta ao tribunal perguntando se sobre essa decisão do Supremo em relação ao fundo partidário também deveria ser considerada a mesma premissa para o dinheiro do fundo eleitoral, criado.”
Por unanimidade, em sessão presidida pela ministra Rosa Weber em 2018, o TSE determinou que de todo dinheiro do fundo partidário e do fundo eleitoral 30% dos recursos tinham que ser destinados a mulheres. “Foi outro passo muito importante para contribuir para candidaturas efetivas, e não
laranjas”, diz.
Para a especialista, que faz doutorado em Salamanca, Espanha, intitulado “O papel do Estado na baixa representação feminina política”, a entrada das mulheres na política brasileira é uma mudança cultural que demanda tempo. “Muitos partidos ainda têm essa cultura arraigada de que política não é lugar para mulher, que mulheres não gostam de política e não têm preparo. E aí continuam a colocar candidatas fictícias.”
As ações julgadas a partir de agora, enfatiza a ex-ministra do TSE, passaram a deixar os partidos políticos “amedrontados”. “Muitos cumpriram a cartilha direitinho, o dever de casa. Outros não. Mesmo assim o impacto real foi muito bom. Nas eleições de 2018 para a Câmara dos Deputados, houve um acréscimo de 50% de eleitas. Em 2014, foram eleitas 9,9% de mulheres (51 deputadas). Agora, em 2018, foram eleitas 77 entre 513, 15%.”
O fato de candidatas laranjas descobertas levarem à cassação de uma chapa inteira, como o caso do Piauí, é motivo mais do que suficiente para que os partidos reflitam sobre a propagação da fraude no pleito de 2020. “Constatada a fraude, que há candidatas laranjas, posso cassar a chapa inteira? Qual resposta a Justiça vai dar a essa ilegalidade?
Há quem diga: posso presumir que a candidata que teve zero voto e não teve gasto de campanha foi laranja? Digo eu: não estou presumindo, estou constatando”, conclui.
Malu Delgado