Lei foi criada em 2015 e estado ainda não havia registrado caso com trans na esfera policial. Das 54 mortes registradas como feminicídio de janeiro a abril deste ano, 46 suspeitos foram presos, seis morreram nas ocorrências e dois estão foragidos.
(G1, 31/05/2019 – acesse no site de origem)
Os casos de feminicídio seguem em alta no estado de São Paulo e aumentaram 54% no 1º quadrimestre de 2019. De janeiro a abril deste ano, 54 mulheres foram vítimas do crime contra 35 no mesmo período de 2018, de acordo com levantamento do G1 e da GloboNews. Foi nesse início de ano que a Polícia Civil registrou, pela primeira vez desde a publicação da lei, em 2015, um feminicídio com uma vítima transexual.
Desde 9 de março de 2015, a legislação prevê penalidades mais graves para homicídios que se encaixam na definição de feminicídio – ou seja, que envolvam “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Os casos mais comuns desses assassinatos ocorrem por motivos como a separação.
A cabeleireira Raiane Marques, 36, foi assassinada em Praia Grande, no litoral de São Paulo, em fevereiro de 2019. Segundo o boletim de ocorrência, a Polícia Militar foi acionada por telefone para verificar uma morte em uma casa na Rua Joaquim Osório Duque Estrada. Quando chegou ao endereço, os policiais encontraram o próprio indiciado e seu irmão. O suspeito contou que conheceu Raiana na madrugada anterior e que a convidou para a sua casa para manterem relações sexuais.
Na casa, a vítima e o suspeito consumiram cocaína e discutiram, ainda segundo o boletim. Raiane quebrou copos e usou um pedaço de vidro para ameaçar o suspeito. Também colocou o pedaço do vidro no pescoço e disse que iria se matar. Segundo o suspeito, ele teve que golpeá-la com um mata-leão e ela desmaiou. Questionado por qual motivo não procurou ajuda médica, ele disse que a vítima estava desmaiada e que acordaria depois. Apesar disso, ele trocou mensagens com o namorado e o contou que havia matado uma pessoa. O suspeito foi preso em flagrante.
No âmbito do judiciário, a primeira denúncia de morte de transexual pelo crime de feminicídio em São Paulo foi apresentada há quase três anos. Em outubro de 2016, o Ministério Publico (MP) de São Paulo denunciou pelo crime de feminicídio o ex-companheiro de uma transexual morta a facadas por ele em fevereiro daquele ano. O crime aconteceu na Chácara Bandeirantes, Zona Sul da capital paulista. Ele mantinha uma relação havia 10 anos com a vítima quando o crime ocorreu.
Segundo o MP, a denúncia reflete a interpretação da Lei Maria da Penha, que caracteriza como violência doméstica sofrida pela mulher “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.
Quando há alteração no registro civil de homem para mulher e quando há uma autodeterminação no campo psicológico, o homem passa a ser considerado, no mundo jurídico, como uma mulher.
Para a promotora Silvia Chakian, coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GEVID), do MP, houve um amadurecimento da Polícia Civil para reconhecer uma transexual como vítima de feminicídio.
“É positivo já receber o registro adequado desde o início, Mostra um amadurecimento. Na época em que a lei foi publicada, havia uma resistência. Questionavam porque precisávamos de uma ‘lei sexista’, que dá uma valoração diferente para essas mortes”, disse.
Prisões
Das 54 mortes registradas como feminicídio de janeiro a abril deste ano, 46 suspeitos foram presos, seis morreram nas ocorrências e dois estão foragidos. Todos foram identificados, segundo a Secretaria da Segurança Pública.
Para a diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, “prender feminicidas não é política de prevenção”.
“A prisão do feminicida é importante para romper com o padrão de impunidade que marca parcela significativa dos crimes no Brasil, é uma resposta para a sociedade e para a família da vítima. No entanto, a certeza de punição, por si só, não exerce um efeito dissuasório no agressor. Estamos falando de feminicídios perpetrados pelos parceiros ou ex-parceiros das mulheres, que decorrem de uma situação de escalada da violência doméstica. Isso coincide também com um momento em que a mulher busca cada vez mais se emancipar pois não tolera mais a violência no relacionamento, e o momento em que essa mulher resolve romper é muitas vezes o episódio que desencadeia o seu feminicídio”, afirma.
“Prender feminicida não é política de prevenção, é o mínimo que o estado pode fazer para garantir punição a quem cometeu um crime brutal. Prevenir é interromper o ciclo da violência antes que o feminicídio ocorra, é ser capaz de evitar que a mulher seja vítima de violência, é fazer cumprir o que prevê a Lei Maria da Penha em sua integralidade”, completa.
Pesquisa do Ministério Público de São Paulo de 2018 mostra que 97% das mulheres mortas não tinham medidas protetivas.
“Isso demonstra que as medidas protetivas têm o poder para coibir essas mortes. É por isso que se diz que o feminicídio é uma trajetória anunciada porque acontece em uma escalada de violência. É preciso afastar e monitorar o agressor, como faz o Guardião Maria da Penha, que acompanha a vítima”, diz a promotora Silvia Chakian.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública informou que “os casos de feminicídio registrados no quadrimestre foram esclarecidos e seus autores identificados, sendo que 46 já foram presos em flagrante ou no curso das investigações, outros seis morreram após as ocorrências e [dois estão foragidos]”.
“Para combater a violência contra a mulher, o Governo de São Paulo ampliou de uma para dez as Delegacias de Defesa da Mulher 24 horas em todo o Estado. Lançou o aplicativo SOS Mulher, que prioriza o atendimento às vítimas com medidas protetivas, deslocando as equipes policiais mais próximas ao local da ocorrência. Os policiais, durante o curso de formação, são instruídos sobre o tema e o atendimento às mulheres”.
A promotora Silvia Chakian reconhece que houve aumento de delegacias, mas considera que o “quadro de recursos humanos é deficitário nas DDMs”. Há carência de recursos humanos e de equipamentos de serviços. É preciso prevenir essas mortes com uma rede adequada, que consiga receber essa demanda no momento em que ocorre a notificação dessa ocorrência”, diz.
Feminicídio x outros crimes violentos
A alta do feminicídio vai na contramão dos outros crimes violentos, que registraram queda no primeiro quadrimestre deste ano.
- Homicídios foram de 1.018 para 968: – 5%
- Latrocínios foram de 93 para 54: – 42%
- Estupros foram de 4175 para 4.062: – 2,7%
- Roubos foram de 90.527 para 83.145: – 8,1%
“[A queda dos outros crimes] demonstra o que eu acabei de falar: as políticas públicas para coibir e prevenir esse tipo de delito não são as mesmas usadas para coibir a violência urbana”, diz Silvia Chakian.
O quadrimestre deste ano registrou o maior número de casos de feminicídios também se comparado aos primeiros quatro meses de 2016, quando 19 casos foram registrados, e do que em 2017, com 44. A média de idade das vítimas é de 34,7 anos.
Para Silvia, a incorporação da lei pelas autoridades policiais não se deu imediatamente e foi progredindo. Além disso, ela observa uma reação contrária à emancipação da mulher.
“Começamos a ter mais registros das agressões. Mas a promotoria também vem observando o aumento da violência, decorrente dessa reação à emancipação sexual e econômica da mulher”.
Cíntia Acayaba e Léo Arcoverde