Por que aumentar a pena para denúncia caluniosa de estupro pode silenciar mulheres

15 de junho, 2019

Cinco projetos de lei foram apresentados após o jogador Neymar ser acusado pelo crime, mas não há dados para embasar as propostas.

(HuffPost Brasil, 15/06/2019 – acesse no site de origem)

A discussão provocada pela acusação de estupro contra o jogador de futebol Neymar Jr. chegou até o Congresso Nacional. Foram apresentados cinco projetos de lei (PLs) na Câmara dos Deputados que aumentam a punição para denúncia caluniosa de crimes contra a dignidade sexual. Para juristas que trabalham com violência contra mulher, tais propostas vão na contramão dos dados no Brasil, que revelam a subnotificação desse tipo de agressão, e podem agravar o silenciamento de crimes.

“Estamos acompanhando estarrecidas o que entendemos como verdadeira tentativa de retrocesso social, após significativos avanços que foram conquistados na legislação quando se fala de estupro, e à conscientização e empoderamento dessas mulheres, que passaram a denunciar com mais frequência o crime de estupro — crime de reconhecida subnotificação”, afirmou ao HuffPost Brasil Renata Amaral, presidente da Associação de Advogadas pela Igualdade de Gênero.

Em 2016, os registros de estupro nas polícias somaram 49.497 casos, conforme informações do 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Devido a dificuldades das vítimas em denunciar esse tipo de violação, contudo, a estimativa é que os números de fato variem entre 300 mil a 500 mil casos por ano, de acordo com o Atlas da Violência 2018.

Por outro lado, não há dados sobre denúncias falsas de estupro. Argumento frequente em grupos conservadores, a afirmação de que 80% das denúncias de estupro são falsas não se sustenta.

Conforme o site de checagem Aos Fatos, o número têm como origem reportagem do jornal Extra que atribui à psicóloga do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Glícia Barbosa de Mattos Brazil a informação, relativa a casos das 13 varas de família do município do Rio. Os dados seriam de registros de abuso infantil em situações de acusação de alienação parental e disputa pela guarda de crianças.

Na avaliação de parlamentares autores das propostas para aumentar a punição para denúncias falsas de estupro, não é necessário buscar informações oficiais ou pesquisas científicas para sustentar políticas públicas.

“Não preciso fazer pesquisa científica quanto a isso porque sou representante, fui eleito por quase 100 mil pessoas para representá-los da melhor forma possível. Então geralmente eu escuto minha base, o que estão pedindo, para atendê-los em projetos de lei”, afirmou ao HuffPost Brasil o deputado Heitor Freire (PSL-CE).

O parlamentar é autor de proposta que aumenta a pena de denunciação caluniosa – crime de motivar investigação contra alguém sabendo que a pessoa é inocente – de um terço até metade quando se trata de crimes hediondos. Hoje a punição é de 2 a 8 anos de prisão. Entre os crimes considerados hediondos, estão estupro e estupro de vulnerável.

Freire diz que sua visão é baseada em relatos que chegam ao gabinete. “São do dia a dia. Casos de mulheres que não se contentam com separações e acusam maridos e namorados. Isso eu já escutei demais. Depois ela se arrependem. Só pedem perdão e fica por isso. São pessoas que acusam, denunciam, de forma caluniosa. Isso são coisas que escuto no meu dia a dia, e vou fazer o máximo para que esse projeto de lei seja logo pautado na comissão e que a gente possa levar para o plenário”, completou.

O deputado confirmou que a proposta foi apresentada devido à repercussão da investigação envolvendo o jogador de futebol. “O que motivou foram muitos casos recorrente parecidos com esse do Neymar. Ele estava sendo tratado como criminoso, como estuprador, mesmo antes de ser escutado, de os fatos virem à tona, das partes serem escutadas. Ele já estava sendo julgado. Quando ele começou a apresentar suas versões – não estou julgando o mérito -, mas deu logo para ver que a versão da mulher é totalmente errada”, disse Freire.

‘Lei Neymar da Penha’

Na Câmara, os cinco projetos de lei foram protocoladas em 6 de junho, um dia após o presidente Jair Bolsonaro defender o atleta. Quatro deles são assinadas por deputados do PSL, partido do chefe do Executivo, e precisam ser analisados pelas comissões antes de serem votados em plenário.

No Senado, Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente, apresentou proposta semelhante em março e retomou o assunto nas redes sociais na última semana. O texto tramita junto com a reforma do Código Penal, que depende de análise da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa.

 

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Denúncia caluniosa é crime grave e deve ter punição à altura. Vamos fortalecer as regras!

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O primerio PL a ganhar repercussão foi chamado de “Lei Neymar da Penha” nas redes sociais. O texto apresentado por Carlos Jody (PSL-RJ) altera o artigo 339 do Código Penal para aumentar a pena de denunciação caluniosa em até um terço nos casos de crimes contra a dignidade sexual (estupro, violência sexual mediante fraude, importunação sexual e assédio sexual).

Jordy atribuiu a usuários de redes sociais o apelido do projeto de lei, mas deixou claro que foi motivada pelo episódio vivido pelo jogador de futebol.

A referência à Maria da Penha, que dá nome à lei de combate à violência contra a mulher no Brasil, é vista por especialistas como uma agressão à luta pela igualdade de gênero.

”É um deboche com a história da Maria da Penha. Uma mulher que sofreu tentativas de feminicídio. Ficou cadeirante por um tiro do ex-companheiro. Tem uma luta imensa, com vida voltada para essa causa. Isso fortalece ainda mais a ideia de que existe uma simetria entre os gêneros e não tem”, afirma Isabela Guimarães Del Monde, advogada da Rede Feminista de Juristas.

A especialista também critica argumentos religiosos do parlamentar. ”É um desrespeito ao princípio de Estado laico, que reconhece as liberdades religiosas, mas não professa nenhuma fé. Qualquer tipo de embasamento de projeto de lei em escrituras religiosas, sejam elas quais forem, é inconstitucional”, afirma Del Monde.

Na justificativa do PL, Jordy sustenta que “um dos exemplos mais tradicionais deste tema [falsas acusações] é a ‘síndrome da mulher de Potifar’, pertencente a um texto bíblico no livro de Gênesis. A teoria dessa síndrome gira em torno da história do escravo José, Potifar (general do exército do rei) e sua esposa que, ao tentar seduzir José e ser rejeitada por este, imputou-lhe falsamente conduta criminosa relacionada à dignidade sexual, culminando na pena de cárcere a José”.

O projeto de lei ainda estabelece que a denunciação caluniosa seria configurada “quando for provada a inocência do indiciado ou acusado, seja por decisão judicial ou administrativa, inocentando-o, ou pelo arquivamento do inquérito policial”.

Para Isabela Del Monde, o trecho é “bizarro juridicamente” porque há casos em que a acusação não tem provas suficientes, mas isso não necessariamente significa que o acusado não cometeu o crime. “Não é uma chancela de inocência”, alerta.

Como é investigado um crime de estupro

Além da palavra da vítima, investigações de estupro incluem também a realização de laudos periciais, depoimentos de testemunhas ou de pessoas que podem ter tido informações sobre o caso e outras eventuais provas materiais.

A produção de provas, contudo, enfrenta algumas dificuldades específicas. “O grande problema é que as vítimas demoram a entender a violência que sofreram e quando conseguem compreender e se dirigem à delegacia ou ao hospital, o laudo acaba ficando prejudicado pela ausência de material que possa dar base para o que ela está dizendo”, afirma Priscila Pâmela, da Rede Feminista de Juristas.

Advogadas que trabalham com situações de violência de gênero também relatam que, por vezes, as denúncias são minimizadas pela polícia, o que faz que inquéritos não sejam instaurados, inviabilizando o processo judicial que poderia levar a uma condenação.

Proposta idêntica à de Jordy foi apresentada pelo deputado Enéias Reis (PSL-MG). Já o PL 3379/29, do deputado Celso Sabino (PSDB-PA), aumenta a pena em até um quarto para denunciação caluniosa de crimes contra a dignidade sexual. O projeto de lei apresentado pelo deputado Cabo Junio Amaral (PSL-MG), por sua vez, prevê que a pena seja dobrada nesses casos.

Entre as especialistas, o entendimento é de que as propostas invertem o problema, na contramão dos dados criminais, e reforçam mitos sobre violência sexual, ligados a consentimento sexual e perfil do agressor. “Até 2005, se o estupro era cometido pelo marido contra a mulher, era uma exclusão de punibilidade. A gente tinha um arcabouço jurídico que legalizava o estupro dentro das relações e isso sedimenta a ideia de que o estupro é feito por caras bizarros, desconhecidos, na rua, em situações muito atípicas”, afirma Isabela Guimarães Del Monde.

Para as juristas, os projetos de lei tampouco seriam eficazes para impedir eventuais denúncias falsas. “Tanto não é uma questão relevante, que isso nunca foi pautado. A denunciação caluniosa é um crime com pena alta. É desnecessário aumentar a punição e isso não iria inviabilizar mulheres que tenham intenção de fazer falsa comunicação de crime. O processo penal não tem essa finalidade”, ressalta Priscila Pâmela.

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