Gravidez por estupro e tortura revelam como a era Pinochet fez das mulheres troféus de guerra

12 de setembro, 2019

Quarenta e seis anos após golpe contra Allende, livro reúne trechos de relatório que revelou atrocidades da ditadura chilena

(El País, 12/09/2019 – acesse no site de origem)

Quase todas as mulheres que foram torturadas no Chile desde o golpe de Estado de 11 de setembro 1973, há exatos 46 anos, sofreram também violência sexual, sem distinção de idade. Pelo menos 316 foram estupradas, incluindo 11 que estavam grávidas. Do total das vítimas que depuseram entre 2003 e 2004 na Comissão Nacional sobre a Prisão Política e Tortura, 12,5% eram mulheres (3.399). Dessas, 229 esperavam um filho, e algumas o perderam; outras deram à luz após serem estupradas por seus torturadores, e muitas passaram por intrincadas e recorrentes tortura sexuais que incluíam agressões físicas e humilhações diante de pais e irmãos.

“De acordo com os depoimentos, as violações hétero e homossexuais foram cometidas de maneira individual ou coletiva. Em alguns casos foi denunciado, além disso, que esse estupro ocorreu diante de familiares, como um recurso para obrigá-los a falar”, aponta o relatório da comissão, de 15 anos atrás, recordado agora no livro Así se Torturó en Chile (1973-1990), do jornalista Daniel Hopenhayn, que reúne os principais trechos do documento e explica os antecedentes históricos da tortura praticada no Chile durante os 17 anos da ditadura de Augusto Pinochet.

“A violência sexual contra as mulheres foi furiosa, desequilibrada”, afirma Hopenhayn. “Há cenas simplesmente inexplicáveis, que transbordam nossa imaginação sobre a condição humana”, acrescenta o jornalista, que considera que o Relatório Valech, como ficou conhecido o texto redigido pelo bispo Sergio Valech, que presidiu a comissão, “é um documento histórico extraordinário, que além disso está muito bem escrito”. “Mas sua própria exaustividade – tem mais de 500 páginas – limitou seu universo de leitores, relegando-o a um status de catatau institucional”. O autor diz que, passados 15 anos de sua publicação original, considerou-se que “era um bom momento para divulgar em um formato mais acessível as passagens que mais importa proteger não só do esquecimento, mas inclusive da inércia de uma memória oficial”.

Uma mulher que foi detida em 1974 na capital chilena e permaneceu dois anos presa sem nenhum processo relatou que “por causa do estupro cometido pelos torturadores, eu fiquei grávida e abortei na cadeia”. “Sofri choques elétricos, fui pendurada, posta no pau de arara, “submarinos” [ameaça de afogamento], simulação de fuzilamento, queimaduras com charutos. Obrigaram-me a tomar drogas, sofri estupro e assédio sexual com cães, a introdução de ratos vivos pela vagina e todo o corpo”, detalhou a vítima. O relato da mulher à comissão, reproduzido em Así se Torturó en Chile, é dilacerador: “Obrigaram-me a ter relações sexuais com meu pai e irmão que estavam detidos. Também a ver e escutar as torturas de meu irmão e pai. Puseram-me na churrasqueira, fizeram cortes com facão na minha barriga. Eu tinha 25 anos”.

Os membros das Forças Armadas e agentes secretos da ditadura de Pinochet agiam sem sombra de humanidade. Uma estudante de 14 anos, detida em 1973 na região de Maule (sul), foi obrigada a fazer sexo oral em três militares. “Não sei quem foram ou como eram, porque estavam encapuzados. Só sei é que minha vida nunca voltará a ser como antes”, diz o depoimento dela reproduzido no livro.

Uma jovem de 16 viveu o inferno supostamente em um recinto da Direção de Inteligência Nacional (DINA), que funcionou entre 1974 e 1977: “Fui estuprada, punham-me correntes, me queimaram com cigarros, me davam chupões, puseram ratos (…). Me amarraram a uma maca onde cães adestrados me estupraram”. Também na DINA, em Santiago, uma jovem de 17 anos foi estuprada reiteradamente e sofreu queimaduras em seu útero: “Vivi torturas e sessões de masturbações por parte dos encarregados do recinto”.

Estupradas e grávidas

A Comissão reuniu depoimentos de 20 mulheres que, por causa das torturas, perderam suas gestações. “Depois de 30 anos, continuo chorando”, relatou uma chilena que estava grávida de três meses quando um dirigente sindical foi obrigado a estuprá-la e ela foi amarrada com corrente pelos seus peitos, garganta, ventre e pernas. Ocorreu na região de Puerto Montt, 1.000 quilômetros ao sul de Santiago. Os filhos e as filhas de mulheres grávidas que foram torturadas também tiveram sequelas indeléveis: “Minha infância foi uma vida cheia de tristezas, trauma e depressão devido ao dano emocional de meus pais, que produziu o fim do seu casamento”, contou uma mulher que estava no ventre de sua mãe, grávida de cinco meses, quando esta foi detida e torturada em 1975 na capital do país.

Houve 15 presas que tiveram seus bebês na prisão. No Relatório Valech, mulheres que foram estupradas contam que ficaram grávidas. Muitas delas abortaram de maneira espontânea ou provocada. Outras tiveram esses filhos. Uma chilena de 29 anos —filha de uma detida de 15 anos que foi estuprada por seu torturador— relatou: “Eu represento a prova explícita, represento a dor  mais forte que minha mamãe viveu em sua vida…”. “Depois que me contaram, comecei a beber, bebia todo o fim de semana, escondida. Por isso sinto que tenho muitas lacunas na minha adolescência”, disse. “Sinto que nós, crianças nascidas como eu, fomos tão prisioneiras e torturadas como as que estiveram presas.”

Houve alguns recintos de tortura especialmente enfocados na violência sexual. Como o Venda Sexy e La Discotéque, um centro da DINA que funcionava na capital. “Tinha música ambiente permanente, em alto volume […]. Nesse recinto se praticou com especial ênfase a tortura sexual. Eram frequentes as humilhações e violações sexuais de homens e mulheres, para o que se valiam também de um cão adestrado”, diz o livro. As vítimas de violência sexual —a maioria mulheres, mas também homens— tiveram que enfrentar consequências emocionais e físicas impossíveis de apagar.

Para Hopenhayn, “quando você encara estes relatos, percebe que uma sociedade não pode saber que torturou se não souber como torturou”. “Não se trata de pensar duas vezes antes de voltar a torturar, porque então acabará torturando. Trata-se de abominar isso só de pensar”, analisa o jornalista chileno.

RELATÓRIO VALECH: “ÚNICO EM SUA ESPÉCIE”

R.M.

O livro de Daniel Hopenhayn se centra nos métodos que a ditadura utilizou para torturar, com que objetivos específicos, como as vítimas foram escolhidas e em virtude de qual política institucional. Así se Torturó en Chile explica, além disso, que a escolha dos métodos de tortura não foi casual.

“Muitos desses métodos de tortura podem ser rastreados já na antiga Grécia, mas os aplicados no Chile eram os do manual da guerra antiterrorista que o exército francês concebeu nos anos cinquenta —depois de ser derrotado pelo Viet Minh na guerra da Indochina— e que estreou na Batalha de Argel (1957)”, conta o jornalista chileno.

“Dali surgiu o que na América Latina se chamou Doutrina de Segurança Nacional˜.  Hopenhayn diz que nos anos sessenta essas técnicas de tortura foram ensinadas nas academias militares norte-americanas pelos militares franceses que tinham atuado na Argélia. E depois “repassadas aos Exércitos latino-americanos com o objetivo de impedir uma insurreição comunista na região”, afirma.

Para o autor, o relatório da Comissão Nacional sobre a Prisão Política e Tortura, formada no Governo do socialista Ricardo Lagos (2000-2006), é “único em sua espécie”. “Durante o século XX houve dezenas de países cujos Estados fizeram da tortura uma política pública, mas acredito que nenhum fez um esforço desta magnitude para reconstruir os fatos”. Daí que, segundo o jornalista, o resultado seja não só crucial para a memória histórica do Chile como também do interesse de qualquer um que deseje compreender a adoção institucional, territorial e social de uma política sistemática de tortura.

Por Rocío Montes

 

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