Tipificação é importante para autoridades pensarem políticas públicas de proteção à população LGBTI+, diz especialista
(O Globo, 31/05/2019 – acesse no site de origem)
O primeiro registro de morte de uma mulher transexual como feminicídio no estado de São Paulo , ocorrido em Praia Grande, no litoral sul paulista, é um avanço e mostra um amadurecimento institucional da Polícia Civil. Mas revela, também, uma tragédia difícil de contabilizar, afirma a diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno. Sem a tipificação correta, diz, faltam instrumentos para as autoridades pensarem políticas públicas direcionadas a crimes de identidade de gênero.
Em fevereiro deste ano, Jamisson Sousa de Lima, de 26 anos, foi preso em flagrante por ter matado a mulher trans Raiane Marques, de 36 anos, no balneário de Praia Grande. Segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, a Polícia Militar atendeu a ocorrência. O boletim indica que, após uma discussão, Jamisson deu um golpe em Raiane, que não resistiu e morreu no local. O caso foi registrado como feminicídio. É o primeiro registro de homicídio de uma mulher trans como feminicídio no estado.
– É uma notícia positiva porque temos uma dificuldade enorme de mensurar a violência contra gays, lésbicas e trans no Brasil já que muitas vezes o registro não conta com essa informação – diz Samira. – Se tivermos o feminicídio classificado dessa forma, daremos visibilidade a um público extremamente vulnerável e que muitas vezes não entra na agenda pública nem em discussões sobre propostas para enfrentar a violência pela falta de indicadores sobre isso.
Desde março de 2015, a lei prevê penalidades mais graves para homicídios tipificados como feminicídio, ou seja, motivados por uma questão de identidade de gênero. Os casos identificados mais comuns são os que envolvem violência doméstica contra mulheres, porque o agressor muitas vezes é conhecido – está dentro de casa ou é um ex-parceiro. As informações de violência contra transexuais são bem mais raras.
Segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, não há registros conhecidos de outros casos como o de Raiane no estado. No início de maio, outra mulher transexual, Larissa Rodrigues, foi morta a pauladas em uma área nobre de São Paulo. O crime foi registrado como homicídio qualificado por motivo fútil. Segundo o órgão, o delegado entendeu que não havia indícios de crime por motivação de gênero.
– É um processo lento mas, aos poucos, instituições como a Polícia Civil têm investido no processo de formação dos policiais para garantir que todo o repertório e treinamento necessário de investigação englobem a perspectiva de gênero e permitam diferenciar homicídio feminino de feminicídio – conta Samira.
Ela lembra que há pelo menos quatro anos o Tribunal de Justiça decidiu em São Paulo que mulheres trans têm direito a medida protetiva, no caso da lei Maria da Penha.
– Um desafio que persiste é que também os casos de lesão corporal dolosa contra mulheres trans sejam assim qualificados. Será que mulheres trans sofrem mais violência que as mulheres? – questiona a especialista. – Quando falamos de feminicídio no Brasil, falamos majoritariamente de violência doméstica. Mas não podemos esquecer que o que determina a classificação de feminicídio não é o sexo biológico, e sim a identidade de gênero.
Em abril, a Secretaria de Segurança Pública contabilizou 16 casos de feminicídio no estado de São Paulo.
Elisa Martins