Três desfechos para um crime: vítimas de estupro falam das dificuldades para conseguir justiça

13 de junho, 2019

Mulheres narram suas histórias e expõem os dilemas pessoais e burocráticos para registrar queixa e ver os criminosos punidos

(O Globo, 13/06/2019 – acesse no site de origem)

A denúncia de estupro feita pela modelo Najila Trindade contra Neymar levantou inúmeras discussões sobre o tema, considerado delicado independentemente do desfecho do caso.

Vítimas, especialistas, integrantes de coletivos femininos e agentes de segurança que lidam com esse tipo de crime relatam as dificuldades que encontram no caminho da denúncia e da investigação, mas lembram que é importante encorajar mulheres que passaram pela situação a sempre procurarem a polícia.

Em todo o país, foram registradas 61.032 ocorrências de estupro em 2017, segundo os dados mais recentes divulgados pelo Fórum de Segurança Pública — uma média de 6,9 casos por hora. Em mais da metade desses casos, a vítima é menor de idade.

Só na cidade de São Paulo, foram 260 casos entre janeiro e abril deste ano — uma média de 65 por mês. Em todo o ano de 2018, foram 798 registros.

Especialistas estimam que os índices são maiores, já que muitas vítimas deixam de registrar a ocorrência, e os casos não entram para as estatísticas.

— É comum a mulher que vivenciou violência sexual ser revitimizada por quem deveria protegê-la. O discurso culpabilizatório está presente e, por vezes, são feitas perguntas que as colocam como responsáveis pelo estupro, como a roupa que vestia, o horário em que estava na rua etc. — explica Marina Milhassi Vedovato, que acompanhou casos de violência no Centro de Defesa e Convivência da Mulher – Mulheração, em Guaianases, Zona Leste da capital.

A investigação pode demorar anos e, em alguns casos, nem mesmo chegar à identificação ou prisão do agressor.

Neste ano, o Tribunal de Justiça do Estado de SP registrou 248 condenações em casos de estupro na capital — 82 com decreto de prisão. Os demais foram convertidos em multas, medidas sócio-educativas, prestação de serviços comunitários, entre outros.

— A mulher deve denunciar e, quanto mais rápido, melhor. Um crime de estupro deixa vestígios. Se a mulher faz a comunicação imediata, é possível colher esses vestígios para a investigação e uma futura condenação — explica Juliana Lopes Bussacos, titular da 6ª Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), na Zona Sul de São Paulo.

O GLOBO conversou com três mulheres vítimas de estupro, cujos casos tiveram enredos diferentes. Em comum, a dificuldade em abrir suas histórias e lidar com traumas e julgamentos. Os nomes são fictícios, a pedido das entrevistadas.

Lorena, 24 anos: “Não fiz a denúncia porque as pessoas me falaram que não foi estupro”

É com essa frase que Lorena*, de 24 anos, moradora do Sul de Minas Gerais, explica o porquê de não ter ido à polícia após a violência sofrida aos 19 anos.

Ela recorda o dia que conheceu o homem que a violentou. Após decidirem ficar juntos, o ato sexual tornou-se dolorido, e Lorena pediu que ele parasse.

— Nos conhecemos na rua e decidimos ficar. Ele pediu para ter relações comigo e, de início, eu não sabia se queria, mas não falei nada. Quando ele começou, senti muita dor e pedi para parar, mas ele não parou. Continuou fazendo com força — conta.

Traumatizada por um sentimento definido por ela mesma como tortura psicológica, Lorena lembra que o estuprador foi incapaz de reconhecer o seu “não” e, até mesmo, “achou tudo muito normal”.

— Chorando, eu pedia para ele parar, mas, quanto mais eu chorava, mais ele fazia — afirma.

Hoje, cinco anos após o estupro, a mineira reconhece a dificuldade que enfrentou na época para materializar o ocorrido, pois as pessoas próximas com quem ela dividiu a história a diziam que, de início, houve consenso e permissão sexual.

— No começo, tive dúvidas se houve estupro, mas não tenho mais. Pedi para ele parar. Hoje, eu denunciaria.

Gabriela, 58 anos: “Ele ficou três anos preso. Quando saiu, percebi que eu ainda era refém”

Era carnaval. Gabriela* estava na piscina de um casal de amigos no Embu das Artes, a 30 km de São Paulo, quando foram surpreendidos por um assalto.

Durante o roubo, Gabriela foi violentada. Em choque, só levou a denúncia adiante por incentivo do amigo.

Passou por delegacia, pronto-socorro do município e, no mesmo dia, pelo Instituto Médico Legal em São Paulo, onde fez o exame que comprovou o estupro. Depois, veio a espera.

— Pensávamos que o cara era da região, mas a polícia não achava. Um dia, meu amigo encontrou um comparsa do cara na rua e descobriu onde ele estava. Foi quando os policiais finalmente o prenderam — diz Gabriela.

Quando foi chamada para o reconhecimento, não teve dúvidas:

— A única coisa de que não esqueço é a cara dele.

O caso foi à Justiça. Gabriela diz que teve sorte porque encontrou uma juíza sensível e um promotor que, diz, a tratou como filha. Mas ouviu do advogado do acusado que ela “estava de biquíni”, como se justificasse a violência.

O acusado foi condenado a dez anos de prisão. Cumpriu um terço da pena e foi liberado.

— Fiquei mal. Só pensava: “Esse cara já está livre e eu ainda sou refém”. Mas foi aí que acordei e resolvi me libertar, sair de casa — conta.

Por muito tempo, Gabriela não conseguiu contar o caso para ninguém. Mas se diz satisfeita com a prisão, e afirma que foi importante vencer o medo da denúncia:

— Na hora, fiquei com vergonha. Você fica na dúvida se a culpa é sua. Mas falar cura. E achei que, se não falasse, ia ficar me devendo isso a vida toda.

B.G., 38 anos: “Só queria que ele fosse preso para não fazer mais isso com outra mulher”

Todo ano, na mesma época, há um dia em que B.G.* não fica bem. Já fazem 15 anos, mas ela ainda se lembra da violência sexual que sofreu, aos 23 anos.

Um homem invadiu seu carro numa manhã na Grande São Paulo. Ela pensava que era um sequestro relâmpago. Um policial percebeu a movimentação e tentou interceptar o veículo, sem sucesso. O criminoso fugiu com B.G. no carro, até uma estrada de terra, onde a violentou.

— Lembro que apanhei muito, e do estupro. Depois, ele fugiu a pé, e saí com o carro, desesperada, pedindo ajuda — conta.

Quando os policiais a encontraram, pediram que B.G. ficasse na delegacia, porque tentariam uma prisão em flagrante.

Só à noite, depois que o criminoso foi capturado e reconhecido, B.G. conseguiu fazer o exame no Hospital Pérola Byngton, referência em atenção a esses casos em São Paulo.

O criminoso foi detido em flagrante e levado a júri popular tempos depois, sob acusação não só de estupro, mas também de roubo e tentativa de homicídio do policial que o interceptou. A pena foi de 21 anos.

— Não tira o medo nem o desespero, mas, se não tivesse sido esse o desenrolar, não consigo imaginar o que teria sido a minha vida. Minha questão era só que ele fosse preso e não fizesse mais isso com nenhuma outra mulher — diz B.G.

Ela reconhece, porém, que nem todos os casos conseguem ser resolvidos.

— Foi imprescindível denunciar. Mas não julgo as mulheres que decidem não fazê-lo, exatamente porque sabemos o estado da sociedade. Há mulheres que passam por isso dentro de casa, com namorado, amigo, e cada uma deve agir como quiser — afirma.

Ana Letícia Leão e Elisa Martins

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